A Anatel concluiu, no final de 2016, o seu planejamento estratégico. Uma das principais mudanças esperadas a partir do novo planejamento é uma transformação completa na forma com que a agência trabalha, que deve implicar uma mudança de todos os regulamentos da agência nos próximos anos.
O conselheiro da Anatel Igor de Freitas, que coordenou o trabalho de planejamento, explica que o foco principal da agência será, a partir de agora, trabalhar com base em resultados concretos e aferíveis. Estes resultados serão medidos a partir de um conjunto de 20 indicadores que a agência irá acompanhar, que vão desde questões referentes à qualidade percebida pelos consumidores em relação aos serviços até indicadores econômicos do setor.
A agência também se prepara para ter um acompanhamento muito mais próximo do mercado em relação à realidade da infraestrutura instalada de telecomunicações, por meio de um Plano Estrutural de Rede. O primeiro levantamento já está feito e ele deve ser atualizado permanentemente, explica Freitas. Isso permitirá que a agência regule com base na realidade de cada município ou região, dentro da categorização que já começou a ser tornada pública na consulta do Plano Geral de Metas de Competição.
Para Freitas, a Anatel precisa desse novo planejamento para voltar a desempenhar adequadamente o seu papel. Segundo ele, isso é essencial para a regulação de questões complexas, como as franquias de dados, ou mesmo para a transformação do modelo. Na entrevista abaixo, Freitas detalha as principais constatações e mudanças esperadas a partir do regulamento.
TELETIME – O que muda com o novo planejamento?
Igor de Freitas – As agências reguladoras são a parte do Estado mais próxima do mundo real, em que decisões interferem drasticamente nas atividades econômicas. O governo passado reabriu uma discussão institucional de equilíbrio entre o governo central e agências e a legitimidade de um conselho para tomar decisões sobre universalização, por exemplo. A Anatel, pela LGT, tem a liderança de propor as coisas. Mas essa liderança não acontece, em parte, porque ao longo do tempo a Anatel deixou de se pautar por resultados, e essa é a principal mudança do planejamento. Ter indicadores objetivos e resultados para que a nossa agenda regulatória parta de um diagnóstico descrito a partir de indicadores, entenda os problemas e aponte o que fazer para mudar. E, sobretudo, ser cobrada por isso.
A questão da qualidade percebida seria um indicador, por exemplo?
Isso, é um bom exemplo. Eu sou o relator dessa matéria no conselho então estou me aprofundando sobre isso, dando prioridade máxima no primeiro trimestre para apresentar uma proposta para consulta na virada de um trimestre para outro. Qualidade é o problema número um das telecomunicações hoje. O que não funcionou até agora? O que tem que ser feito para melhorar? Vamos diferenciar a gestão de qualidade de acordo com a realidade do País, e isso é a base do planejamento.
Como assim? Uma regulamentação assimétrica? Por áreas?
Existem três grandes instrumentos de gestão que vamos seguir.. O primeiro são os Planos Estruturais de Redes de Telecomunicações. A Anatel precisa saber se há uma infraestrutura capaz ou não de atender às demandas em cada região, porque se não souber, qualquer intervenção de qualidade, universalização, espectro, franquias, o que seja, será um tiro no escuro. Esse Plano Estrutural de Rede foi feito no segundo semestre de 2016 pela superintendência de planejamento regulatório juntamente com o ministério, e traz um diagnóstico descritivo do conjunto de infraestrutura e quais são os gaps nas redes de transporte e distribuição. Ou seja: o quão a oferta está longe ou não do que deveria ser. O plano está feito e chegou ao conselho, e será colocado em consulta pública. Isso será a base para os TACs, para o cálculo do saldo da concessão, para discutir a alocação de recursos do Fust, que deve entrar na pauta do Legislativo etc. Isso tem que estar à disposição do público, para consulta em tempo real e atualização pelo menos anual. A ideia é que qualquer cidadão, prefeito, gestor público, possa olhar e ver o que existe na sua cidade, e se houver divergências, nos alertar para acionarmos a fiscalização.
E como isso permitirá o tratamento regulatório diferenciado cidade a cidade?
Então, o plano Estrutural de Redes se combina com o segundo elemento de gestão que temos, que é a categorização, ou clusterização, dos municípios. Essa categorização combina a oferta de redes e capacidade com a demanda. Isso permite dizer quais são os mercados maduros e com competição estabelecida, onde a regulamentação tem que ser uma, e mercados onde não se consegue mais do que um provedor de infraestrutura, porque a escala que aquela demanda pode gerar é insuficiente para viabilizar um ou sequer um provedor. O que fazer para garantir a oferta de serviços com preço e qualidade adequados? Essa categorização de quatro grupos, que apareceu na consulta do Plano Geral de Metas de Competição, valerá para qualquer outra ação da agência. Por exemplo, gestão de espectro, permitindo pensar em leilões diferentes para regiões diferentes. São instrumentos de gestão de interna da Anatel mas que devem ser públicos, até para que o governo possa fazer as opções políticas.
E como a Anatel pode saber se essas medidas regulatórias estão dando os resultados?
Esse é o terceiro instrumento de gestão, que são os Indicadores de Resultado. O relatório anual de gestão da agência, até em linha com o que virá a ser a nova Lei das Agências Reguladoras, tem que ser um conjunto compreensível e enxuto de indicadores de dimensões de resultados que interessam: acesso ao serviço, uso dos serviços, qualidade e preço, pelo lado do consumidor, e do lado das empresas são vários, mas entre eles rentabilidade, carga tributária entre outros. São ao todo 20 indicadores, que conversam entre si, têm como base padrão os municípios, exceto nos casos em que isso não se aplica. Mas sempre tem um componente de diversidade regional. O importante é que esses indicadores trazem a perspectiva do consumido, a perspectiva do prestador/investidor e a perspectiva do governo. Onde a qualidade está ruim? Onde o preço está ruim? Onde a qualidade é inadequada? Onde a carga tributária é um problema? É possível dizer o que é o Brasil de hoje, nas telecomunicações, com base nesses indicadores. Isso permite trabalhar ações para mexer essa realidade. Não definimos metas, mas temos sim os benchmarks internacionais e podemos ler para onde vai a derivada, ou seja, se está melhorando ou piorando.
O acompanhamento então é feito com base nesses indicadores? Quem é que acompanha essa evolução?
Mais que isso: a atuação da agência passa a ser orientada a resultados. Para isso precisa ter uma integração entre as áreas. A mudança na estrutura da agência, prevê uma nova função da Superintendência Executiva, mais robusta e acima das outras superintendências, e a partir dali é possível ter uma visão sobre onde é necessário acionar a fiscalização, alocar espectro, recursos etc. O superintendente executivo é que olha o painel de controle. Não havia nenhuma parte da Anatel responsável por olhar a agência como um todo. Essa será a grande diferença. O Carlos Baigorri (superintendente executivo) tem o perfil e terá as condições de desempenhar esse papel. O conselho é sempre renovado, por isso é importante que a o corpo técnico tenha condições de permanentemente fornecer ao conselho informações adequadas para as decisões. A Anatel não tem como funcionar bem simplesmente com matérias sendo sorteadas aleatoriamente para quatro conselheiros isoladamente. Alguns processos já vêm sendo implementados, como a agenda regulatória permanente, mas tem muita coisa a ser feita nos próximos dois anos.
E isso implica mudanças em que instrumentos regulatórios?
Basicamente, todos. O conjunto normativo atual não se presta para os próximos 10 anos. Todos os regulamentos de serviços precisam ser alterados, e isso aparece na agenda regulatória em consulta. O PGMC já está com a mudança em curso dentro dessa nova lógica e de uma nova realidade competitiva. A revisão da gestão da qualidade é crítica e, sobretudo, vamos rever a relação com o consumidor. O RGC (Regulamento Geral de Direitos do Consumidor) tem três anos e já podemos dizer que há uma série de coisas que funcionaram e outras que não funcionaram. Parte dessa nova lógica se reflete nos regulamentos, outra parte aparece nos TACs. Muda tudo, mas a primeira coisa é que agora a gente terá mais clareza de onde se quer chegar. Os indicadores ficam públicos, e isso é base para as manifestações da agência no Congresso, por exemplo, e para sermos cobrados pela sociedade.
E a agência está preparada para trabalhar dessa forma? Os funcionários, o corpo técnico, o conselho já sabem trabalhar assim?
Se ela não implementar os novos processos, ajustar a sua estrutura, ela não estará preparada. A Anatel tem que se modificar internamente, com as mudanças de pessoal do final de ano, a alteração do regimento que será feita ao longo desse ano e os ajustes de processos em curso, e realocação de pessoas e capacitação onde for necessário.
Que resultados concretos podem ser esperados?
Veja o exemplo da discussão das franquias. A Anatel não estava preparada para enfrentar esse debate. A insegurança da sociedade em relação às franquias é a insegurança de quem não sabe se vai ficar refém de uma decisão unilateral privada sobre o que será a franquia, como será estabelecido o limite etc. E a Anatel não tem informação para contrastar, não tem informação sobre as redes, perfil de uso etc. Se não temos essas informações de base, não temos legitimidade para propor uma solução, nem para um lado, nem para o outro. Ainda não estamos plenamente preparados para isso, mas esse nosso ajuste interno é crítico para a mudança do modelo de concessões, gestão dos TACs com as empresas etc.
Não é um pouco arriscado fazer essa mudança toda na estrutura da agência no meio de decisões tão críticas, como a mudança do modelo, o caso da Oi, os TACs …?
É verdade, mas por que que as coisas precisam ser feitas nesse cronograma planejado? Para atender às mudanças que são necessárias, se os investimentos são suficientes, se há danos ao erário, se há respeito aos contratos… Há muita comunicação a ser dada e o presidente Quadros tem feito isso e falado sobre a visão da agência. Mas temos o nosso dever de casa interno que é nos preparar para essas mudanças. Só teremos sucesso em tudo o que vai ser feito com esse ajuste. Por exemplo, como é que eu vou fiscalizar os investimentos dos TACs? Como é que eu acompanharei os investimentos, a evolução das redes? Particularmente eu estou mais seguro e tranquilo em tomar decisões críticas sabendo que estamos planejados para essas mudanças, ainda que nem tudo esteja pronto. O regimento ainda não está fechado, mas já estamos emulando a nova estrutura e as pessoas que estão nas posições estão comprometidas com esse projeto. O crucial é saber onde quer chegar e como.
O regulamento do novo modelo, previsto no PGO, fala em contrapartidas a serem estabelecidas. Como evitar que se repita o que houve na fusão da BrT e Oi, em que vários condicionantes foram colocados, mas a sociedade não conseguiu acompanhar nada disso?
Há uma disciplina de acompanhamento de políticas públicas, e isso é algo de que o Brasil precisa muito, dada a escassez de recursos. O saldo de uma concessão, a conversão de multas em TACs, os fundos, tudo isso são recursos públicos. A Anatel não pode tomar essas decisões sozinha. Ela implementa uma política, aponta prioridades, mas isso tudo passa pela avaliação e chancela do governo democraticamente eleito. Ele é que define quem vai ser beneficiado em uma política, como foi, por exemplo, a decisão de distribuir conversores de TV digital aos beneficiários do Bolsa Família. E saber quanto dinheiro vai ser colocado, e onde. No caso da Oi com a BrT, houve condicionamentos colocados na hora, alguns deram certo, como a rede que é usada pela RNP, mas daqui para frente esse acompanhamento será feito de maneira muito mais permanente. Não basta estimar o que vai acontecer. Tem que ter um acompanhamento em tempo real para corrigir a alocação dos recursos e esforços. O Plano Estrutural de Rede será a base para alocar os recursos de um Fust ou de um saldo de concessão, viabilizando investimentos que não seriam feitos pelo simples interesse empresarial. É tentar mudar uma realidade.
Parece que o governo está tendo dificuldade de indicar os benefícios que virão com a mudança do modelo, por não ter esse tipo de dado…
Pois é, mas não foi possível preparar toda esses referenciais e esse arcabouço antes das mudanças. O ideal era ter feito tudo antes, mas não deu. Ter que gerenciar a situação da Oi, discutir a mudança das concessões, gerenciar alguns bilhões em multas em investimentos para o País, são coisas que não podem esperar mais três ou quatro anos, precisam acontecer agora. A Anatel tem condição para isso, foco e gestão interna, e a estrutura nova busca isso. O conselho está comprometido com essas mudanças. São 1,6 mil pessoas e meio bilhão de orçamento. Faltam recursos? Faltam, mas ainda assim temos condições de fazer esse trabalho. Historicamente fomos ineficientes e a sociedade tem razão de nos cobrar. Se quisermos evoluir para um modelo mais leve no futuro, se quisermos lidar com a situação de quebra de uma grande concessão, temos que estar preparados.
Para não falar de outras questões importantes mas nem tão urgentes, como regulação do ambiente de Internet, serviços OTT, questões como franquias de uso…
Hoje nenhuma área da Anatel está pronta para enfrentar profundamente esse debate. Qual área da Anatel que conhece OTT profundamente? Nenhuma. Ninguém sabe como é a realidade operacional e comercial das grandes empresas de comunicação do mundo hoje. Qual o conhecimento real que a agência tem do funcionamento das empresas da Internet? Sabemos como a infraestrutura de telecomunicações é usada? Não estamos preparados para dialogar sobre franquias, por exemplo. Não é só saber medir a escassez, mas é saber se essa infraestrutura está adequada para quem está usando. Sem isso não conseguimos fazer o nosso trabalho.
Dá para dizer que a base do novo modelo regulatório da Anatel é acompanhar a qualidade, as relações de consumo e o acompanhamento competitivo?
É isso, e isso se reflete em todos os regulamentos de serviço. E essa é a base de um setor que tem demonstrado que consegue conviver com o Estado na função de regulador, sendo a prestação de serviço uma atividade privada, ainda que seja um serviço essencial. Aliás, eu entendo que doutrinariamente o direito constitucional e administrativo não estão totalmente preparados para as inovações jurídicas que as telecomunicações propõem, principalmente pela possibilidade de impor e criar competição, e isso tem que ser construído, com o bom funcionamento regulatório da agência. A realidade da infraestrutura de telecom muda muito rápido, o investimento é elevado e a cobrança da sociedade é permanente. A agência perdeu parte de sua legitimidade e parte da credibilidade que teve no passado porque não se ajustou para prestar informações sobre suas decisões no tempo certo, no tempo que a sociedade precisa. Funcionar orientada a resultado, entendendo que o Brasil é um país com realidades regionais e municipais que precisam ser consideradas na regulamentação, e tomar decisões diferentes com base nisso, é algo novo para a Anatel e para qualquer setor regulado.
Com essa regulação mais granular, olhando município a município, não existe o risco de a agência começar a dizer para as empresas como elas teriam que trabalhar?
Não tenha dúvida de que esse risco intervencionista existe, e você sabe que eu, pelo meu perfil, sou contra isso. Mas a agência já é excessivamente intervencionista, só que sem saber porquê e sem orientação a resultado nenhum. Um exemplo: o regulador estabelece um padrão mínimo de qualidade e isso tem que ser cumprido. No caso da banda larga esse piso é 80% da velocidade ofertada. Ai vamos para a realidade de demanda. É razoável que esse piso seja o mesmo em todas as regiões? A expectativa de qualidade, em termos do que tem que ser entregue, é igual na grande São Paulo ou numa cidade do sertão nordestino? Pode parecer uma provocação politicamente incorreta mas não é nada disso se olharmos sob a lógica econômica. O que é preciso colocar de investimentos para atender a esse padrão de qualidade em função da demanda faz com que em alguns lugares a conta feche e o investimento seja feito, e em outros lugares a conta não feche e o investimento não seja feito. Se eu quero impor um único padrão de qualidade para todo o Brasil, que é como a coisa funciona hoje, nos locais em que a conta não fecha e que o investimento em infraestrutura não é pago apenas pela demanda, o serviço não vai chegar. Ai a pergunta é: o governo tem disposição para fazer esse investimento? A banda larga para ser universalizada precisa de investimentos pesados de dezenas de bilhões de reais. E além de universalização, que é basicamente cobertura, banda larga precisa de disponibilidade e capacidade.
O modelo de telecom atual é focado apenas na universalização, ou seja, na cobertura.
Exatamente, mas o modelo atual previa também que haveria um recurso do Fundo de Universalização que seria colocado, o que nunca foi feito. A equação dependia do quanto do fundo seria colocado. Como nada foi colocado, a variável dependente passou a ser a qualidade. A cobertura é obrigação, imposta nos editais. O que varia, portanto, é a qualidade. Devemos discutir isso. Podemos manter a mesma lógica ou tentar uma lógica nova. Ninguém discute que dinheiro tenha que ser colocado em banda larga, mas fica mais fácil se a gente conhecer a realidade de cada município.
Fonte: Teletime News de 23 de janeiro de 2017, por Samuel Possebon.