A TV paga perde 150 mil usuários por mês em 2019. A erosão que se vê no setor não tem precedentes na história recente e já joga o mercado de TV paga para os patamares de 2012. O que leva a este preocupante cenário é uma combinação entre crise econômica e concorrência com a Internet, mas não com serviços de streaming como Netflix ou Amazon. O que de fato tem erodido a base de TV paga, dizem os operadores de todos os portes, é a concorrência das caixas conectadas que recebem conteúdos piratas pela banda larga. As caixas piratas oferece centenas de canais distribuídos por IP, sem autorização dos titulares destes conteúdos, e sem nenhuma remuneração para a cadeia audiovisual que produz estes canais. Este consumo clandestino ganha fôlego diante da crise econômica, da simplicidade tecnológica sob o ponto de vista do usuário e dos custos das soluções em relação aos serviços legais (os serviços piratas não pagam pelo conteúdo, não pagam impostos, não investem em rede e não empregam ninguém. Por isso são mais baratos). O mercado de TV paga tem, há vários anos, discutido seu futuro em relação aos novos modelos de Internet. Mas no Brasil, especificamente, a pirataria cria um cenário especialmente grave. E talvez a única solução para este problema seja partir para uma abordagem para lá de polêmica, mas que precisa ser tratada abertamente: dar ao operador de banda larga algum "poder de polícia" sobre aquilo que trafega nas redes. O que significa discutir limites ao conceito de neutralidade de rede, uma das pedras fundamentais do Marco Civil da Internet.
O assunto, que já vinha sendo bastante discutido entre especialistas há alguns anos, mas sempre com o receio de gerar uma grande comoção, suscitada por um tema tão espinhoso quanto a neutralidade. Na semana passada, contudo, durante a SET Expo, evento do mercado de radiodifusão realizado em São Paulo, os floreios foram deixados de lado, conforme pode ser lido nesta reportagem de Bruno do Amaral. Antes que se diga que as "teles querem acabar com a Internet livre", convém analisar e entender o problema.
Primeiro, é preciso entender a gravidade numérica da pirataria de conteúdos. A ABTA, associação que congrega as operadoras de TV paga, estima algo em torno de 4,5 milhões de domicílios recebam canais de TV paga por meio de serviços clandestinos, o que gera um prejuízo anual na casa dos R$ 8,7 bilhões para toda a cadeia. O número é evidentemente subestimado pois é baseado em um comparativo simples entre o número oficial de TV por assinatura e o número que sai da Pesquisa de Amostra de Domicílios (PNAD) feita pelo IBGE. Como o dado usado pela ABTA ainda é referente a 2017 e a PNAD não é uma pesquisa elaborada especificamente para medir com precisão como as pessoas assistem a seus conteúdos de TV, é possível afirmar com segurança que o problema da pirataria é bem maior.
No início do mercado de TV paga no Brasil, há 30 anos, o problema eram operações de cabo não-licenciadas, algo que ainda se vê em regiões dominadas pelo crime. Nos anos 2000, a pirataria passou a operar baseada na quebra de acesso condicional de serviços distribuídos principalmente por satélite, mas este modelo é cada vez menos relevante. O que hoje de fato incomoda são as caixas que distribuem o serviço por streaming, via banda larga, e a distribuição pela própria web e aplicativos de celular.
O que nos leva à pergunta: se o sinal das caixas clandestinas, sites e apps de conteúdos piratas está chegando pela banda larga, por que ele não pode ser bloqueado em tempo real pelo operador das redes? A resposta está no Marco Civil da Internet. O operador não pode interferir naquilo que trafega sobre a rede de banda larga, nem privilegiando, nem degradando, nem bloqueando, sob pena de ferir o princípio da neutralidade. O tráfego dos conteúdos piratas é identificável por meio de diferentes técnicas que o operador pode aplicar. Ele só não pode agir. No caso dos operadores de rede, qualquer intervenção só pode acontecer mediante ordem judicial, o que leva tempo, permitindo ao serviço pirata alterar seus servidores dinamicamente antes que as ordens da Justiça sejam executadas. Esta é uma situação de clara assimetria entre o operador de rede e o operador de aplicações, por exemplo. Se um vídeo ou música protegido por direito autoral é colocado no Youtube ou no Facebook, estas plataformas podem agir e suspender aquele conteúdo. A ação é feita a partir de algoritmos que identificam padrões de áudio e imagem, mediante solicitação dos detentores dos direitos.
Uma solução apontada por alguns especialistas seria criar um mecanismo semelhante de autorização prévia, mas a ser executado pelos provedores de infraestrutura. Por exemplo, criar uma espécie de "cadastro" de domínios e IPs autorizados a distribuir conteúdos protegidos por direitos e de grande valor para o usuário, como campeonatos esportivos ou séries de grande interesse. Qualquer tráfego IP com estes conteúdos provenientes de endereços não autorizados seria classificado como suspeito, podendo ser degradado ou bloqueado pelo próprio operador, sem a necessidade de aguardar uma decisão judicial. Esse mecanismo não bloquearia todos os conteúdos piratas, mas ao centrar esforços naqueles mais relevantes, como eventos ao vivo ou programas de grande audiência, já criaria um desestímulo ao consumo de conteúdos piratas.
Para ter isso com segurança jurídica, a legislação brasileira precisaria ser alterada para prever esta possibilidade. Mais do que isso, seria necessária uma coordenação entre todos os operadores e os detentores dos direitos dos conteúdos. Hoje o mercado de acesso banda larga no Brasil cresce impulsionado por pequenos e médios operadores que não são operadores de TV paga e que, portanto, não têm interesse direto no assunto a ponto de fazerem investimentos necessários a esse tipo de monitoramento. Para funcionar, esta solução precisaria ser tratada no nível dos grandes detentores de backbones, pontos de troca de tráfego (PTTs) e servidores de distribuição de mídia (CDNs).
A mudança na legislação por si só é um tema complexo. A neutralidade de rede é considerada uma das grandes conquistas dos direitos civis da Internet brasileira. Mas é uma construção jurídica que já não atende a algumas situações que se apresentam nos dias de hoje. O combate à pirataria é uma delas. Da mesma forma, serviços de Internet das Coisas e algumas aplicações 5G, que são baseadas em qualidade de serviço, também mostram-se incompatíveis com a leitura imediata do Marco Civil da Internet no quesito da neutralidade, sendo necessário recorrer a conceitos regulatórios de redes privativas e outros subterfúgios para que se admita algum tipo de diferenciação de tráfego entre os diferentes serviços. Não por acaso, uma das grandes preocupações manifestadas pelos provedores de infraestrutura na consulta sobre 5G foi sobre este aspecto.
No caso da pirataria, o problema é sério porque o que se discute não são limitações a modelos de negócio futuros, como IoT ou 5G. A pirataria está afetando diretamente toda a indústria audiovisual hoje, afeta o mercado de esportes e detentores de direitos, e prejudica o mercado de telecomunicações em um serviço que (ainda) tem 16,5 milhões de assinantes. A pirataria, além de crime, quebra o modelo de remuneração de toda a cadeia de valor, dos trabalhadores da indústria aos tributos recolhidos. Hoje, o modelo legal da Internet brasileira é um limitante para o combate a este tipo de prática. É uma situação que merece, no mínimo, uma reflexão.
Fonte: Teletime News de 3 de setembro de 2019, por Samuel Possebon.
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