O Brasil acabou se tornando um obstáculo relevante para a fusão entre AT&T e Time Warner. Mas, surpreendentemente, o problema não foram os eventuais conflitos com a Lei do SeAC, que impede a propriedade cruzada entre empresas de telecomunicações e empresas produtoras de conteúdo. O maior entrave, no momento, é a concentração do mercado de TV paga brasileiro, algo que, na visão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), pode ser agravado pela bilionária fusão entre as duas companhias norte-americanas. A AT&T, como se sabe, controla a Sky , segunda maior operadora de TV paga Brasileira, e o grupo Time Warner é controlador das programadoras Turner (dona de canais como Cartoon Network, CNN, TNT e Esporte Interativo, entre outros) e HBO (que além dos canais com a marca HBO e Max, também distribui no Brasil canais como importantes Warner, AXN, Sony etc).
Vale lembrar que há duas semanas a Superintendência Geral do Cade recomendou ao colegiado do tribunal concorrencial que bloqueasse a fusão, alegando riscos de práticas anticompetitivas. Cabe ao conselho do Cade, agora, decidir, e o prazo para isso pode ser de até quatro meses.
Esta semana o Chile anunciou o sinal verde para a fusão naquele mercado, estabelecendo alguns remédios. Com isso, apenas o Brasil, além da aprovação final nos EUA, ficarão pendentes para que a fusão de US$ 85 bilhões possa ser concretizada. Nos EUA, todas as informações que circulam na imprensa especializada e econômica dão conta de que a fusão será autorizada, mesmo com as "diferenças" entre o presidente Trump e a rede de TV CNN e as críticas abertas da campanha eleitoral de Trump à fusão. A leitura dos analistas americanos é que não haveria como impedir esta concentração vertical uma vez que há alguns anos uma operação semelhante juntou a maior operadora de cabo do país, a Comcast, ao gigantesco grupo de mídia NBC/Universal. Essa fusão, realizada em 2009, veio cheia de condicionantes, que estão expirando agora. A aprovação de uma eventual fusão entre AT&T com Time Warner, com condicionantes similares, poderia inclusive ajudar a manter algumas destas condições de mercado em vigor, tais como distribuição de conteúdos de forma isonômica e sem exclusividade a outros operadores.
O Brasil não é mais do que 3% dos negócios da AT&T e da Time Warner. É, portanto, improvável que a fusão empaque porque o país ainda não a aprovou ou, na hipótese de prevalecer o entendimento da Superintendência Geral, barre completamente a operação. Se as autoridades dos EUA derem o sinal verde e o Cade ainda não tiver se posicionado, possivelmente os acionistas da AT&T e da Time Warner terão que concordar em fazer a fusão mesmo com a situação brasileira pendente, e se esta posição for negativa, a Sky teria que ser colocada à venda pela AT&T (hipótese mais provável) ou a Time Warner teria que retirar seus canais do País (improvável). Esse cenário colocará o Brasil diante de uma situação curiosa: uma operação eventualmente barrada por questões concorrenciais poderá levar ao mercado brasileiro de TV paga a ficar ainda mais concentrado. Mas para entender o imbróglio é preciso analisar a fundo o que disse o Cade.
Mercado concentrado
A Superintendência Geral do Cade, ao fazer a análise concorrencial da fusão entre AT&T e Time Warner, constatou algo que o próprio órgão já disse algumas vezes e que a Ancine e Anatel também apontaram em diferentes análises: a TV paga brasileira é concentrada (o que não quer dizer que não seja competitiva). Há quatro grupos que controlam mais de 95% do mercado de distribuição, sendo que dois deles (América Móvil e Sky) controlam nada menos o que 80% do mercado. E no segmento de programação, não mais do que cinco conglomerados concentram a maior parte dos canais, assinantes e receitas do setor, sendo Globosat e Time Warner (contando Turner e HBO) nas duas primeiras posições. Esta concentração pode ficar restrita a apenas duas ou três programadoras, a depender do gênero que se analise.
Como veremos em detalhes mais adiante, a Superintendência Geral do Cade viu ainda risco de colusão (coordenação) entre as duas maiores programadoras e duas maiores operadoras caso a fusão entre Time Warner e AT&T seja aprovada, pois o tribunal concorrencial aponta que o grupo Globo tem poderes significativos sobre a Net (do grupo América Móvil) e Sky. Segundo o Cade, o grupo Globo preservou certos direitos de acionista nestas empresas, mesmo estando fora do controle no entendimento das agências reguladoras específicas. Entre estes poderes estão os de ter acesso a informações estratégicas e contratos das operadoras, bem como poder de veto sobre programação estrangeira.
VoD complementar
A análise preliminar da área técnica do Cade vai por alguns caminhos que podem suscitar muito debate. O mais polêmico é o fato de ter excluído do mercado relevante em análise concorrentes como Netflix e Amazon Prime, que oferecem seus serviços de subscription VoD no Brasil. O papel dos provedores OTT no mercado de vídeo por assinatura é uma questão em debate nas análises concorrenciais em todo o mundo e não existe uma jurisprudência formada, mas é cada vez mais difícil imaginar que empresas que hoje contam com algo entre 6 milhões e 6,5 milhões de usuários no Brasil (número estimado pelo mercado para os acesso da Netflix) não tenham nenhuma influência competitiva sobre o mercado de TV paga, tanto do lado dos distribuidores quanto de programadores. Se esta base de assinantes fosse considerada, o market-share da Sky seria de menos de 20%, por exemplo. Lembrando que os números são apenas estimativas.
A Netflix, ressalte-se, é hoje uma das maior produtoras de conteúdo do mundo e a Amazon, ainda pequena no Brasil, segue o mesmo caminho. Existe uma transformação tão radical do modelo de TV paga, com todos os canais e as próprias operadoras de TV paga tradicionais avançando velozmente em suas plataformas OTT, que manter o VoD apenas como um "segmento complementar" do mercado parece uma leitura excessivamente conservadora. A própria justificativa da AT&T para propor a compra da Time Warner numa das maiores fusões da história do mercado de mídia foi justamente a de desenvolver modelos que permitissem um contraponto aos modelos de consumo de vídeo pela Internet.
O Cade entende que o VoD é muito mais complementar do que um substituto perfeito para os serviços tradicionais de TV paga. "Sob a ótica da demanda, também não se vislumbra uma substituição perfeita: alguns tipos de conteúdo, como jornalismo e esportes ao vivo, adaptam-se especialmente bem ao modelo de negócio de TV por Assinatura. O valor atribuído ao sincronismo da transmissão com os acontecimentos ou o ineditismo faz com que estes conteúdos não se adequem ao elemento distintivo das plataformas OTTs, que é a não-linearidade. Julga-se, assim, que para fins desta análise não é oportuna a inclusão de plataformas avulsas no mesmo mercado relevante", diz a análise da Superintendência Geral.
Muitos riscos
Nas conclusões acerca da concentração vertical entre AT&T e Time Warner, a área técnica do Cade elenca uma série de riscos concorrenciais. No entender da superintendência (que ainda precisa ser validado pelo colegiado, ressalte-se), a Sky pode ter acesso aos conteúdos TW de maneira mais vantajosa do que seus concorrentes, ou pode deixar de distribuir conteúdos de terceiros, risco agravado por ter marcas fortes, conteúdos relevantes e alguns dos canais líderes em seus mercados. A fusão poderia ainda, no entendimento da superintendência, levar a Sky a ter acesso aos contratos que suas concorrentes têm com a Time Warner ou ainda fazer com que a Time Warner tenha acesso a informações sobre os contratos de suas concorrentes com a Sky. Sem falar no potencial risco de infração à Lei do SeAC. Tudo isso está na análise da Superintendência Geral.
Coordenação com a Globosat
O argumento final da área técnica do Cade contra a operação é também o mais surpreendente. Diz a Superintendência Geral que existe risco de colusão, uma vez que foi identificada pelo Cade uma situação parecida de participação cruzada envolvendo a Globosat, a operadora Net e a própria Sky.
O Cade concluiu que "(i) a Globo tem acesso a informações comerciais sensíveis da Telecom Americas (Claro/Embratel/NET), inclusive aos contratos firmados com outras programadoras e (ii), para fins da presente análise, o Grupo Globo e o Grupo Claro atuam de forma integrada e verticalizada na cadeia de TV por Assinatura", diz o parecer. Mais adiante, o documento afirma que "o Grupo Globo (…) tem acesso a informações relevantes tanto da Sky quanto da Telecom Americas (Claro/Embratel/NET). Com a operação, a TW passa a ter acesso a essas informações em relação à Sky. Assim, a Globo tem acesso a preços e condições comerciais estabelecidos pela Sky e pela NET/Claro para outras programadoras". Segundo o Cade, a TW passará a ter essas mesmas informações a respeito da Sky. "Tal fluxo de informação torna bem mais provável a coordenação entre as maiores programadoras e operadoras, já que elas poderão concordar mais facilmente com os termos da coordenação e poderão detectar desvios também de maneira mais fácil e rápida", diz o texto, para concluir que "tanto o mercado de programação quanto o de distribuição de TV por Assinatura são altamente concentrados. Tal característica pode facilitar a coordenação, principalmente entre as duas maiores empresas em cada mercado".
Mas esta análise do Cade sobre a influência da Globo pode ter um problema: ela é baseada, ao que tudo indica, apenas nas informações oferecidas pela Ancine por meio de uma Nota Técnica que foi produzida em 2016 para analisar a concentração no mercado de TV paga. Mas este noticiário apurou junto a fontes familiarizadas com os acordos de acionistas das empresas (Globosat, Net e Sky) que o Grupo Globo não tem esse poder de ter acesso aos contratos das empresas concorrentes. Para tirar a dúvida, seria necessário, então, o Cade fazer uma nova verificação, recorrendo aos contratos originais, e não à análise da Ancine.
De qualquer modo, o que o Cade aponta é o fato de que o mercado de TV paga já é, hoje, bastante concentrado. A fusão entre Sky e a Time Warner, por configurarem a segunda força nesse duopólio, poderia agravar o quadro.
A área técnica do tribunal concorrencial optou inclusive por nem desenhar possíveis remédios para a operação, mesmo considerando que no passado o Cade já aprovou fusões igualmente ou mais complexas, como a da própria Sky com a Time Warner. "Registra-se, por fim, que discussão de remédios em operações com o nível de problemas aqui apontado é de difícil formatação. Se, por um lado, remédios comportamentais podem ser condizentes com preocupações concorrenciais derivadas de integrações verticais, o seu desenho é de difícil construção. Além disso, a sua execução e monitoramento também não são triviais", diz a superintendência.
Plano B
A prevalecer este entendimento de que a operação deve ser barrada no julgamento final pelo colegiado, a opção mais plausível será a de venda da Sky pela AT&T. A questão, nesse caso, é quem poderia comprar. E ai reside um novo problema concorrencial, pois a probabilidade de a Sky acabar sendo absorvida por um dos players atuais do mercado de telecomunicações é grande.
A primeira candidata é a Telefônica/Vivo, que disputa o mercado de TV paga com a Sky e tem cerca de 9% de market-share, o que geraria uma empresa resultante com 37% de market-share. Outra possibilidade é um complexo arranjo entre Sky, Oi e TIM, neste momento bastante improvável pela delicada situação econômica da Oi. Uma consolidação apenas com a TIM apenas também é especulada, considerando que a empresa italiana é controlada por uma empresa de mídia, a Vivendi. Todas estas possibilidades agravam a concentração já existente, seja no mercado de TV paga, seja no mercado de telecomunicações como um todo.
Fora estas possibilidades, seria necessário vir ao Brasil um novo operador de TV paga. Especula-se sobre um eventual interesse da Dish, que já flertou com o mercado brasileiro; a francesa Altice, que recentemente comprou a Cablevision nos EUA e a Portugal Telecom; ou a Liberty Global, que já teve uma pequena presença no Brasil, saiu, voltou a estudar o mercado, mas decidiu concentrar seus esforços na Europa.
Os obstáculos à aprovação da fusão no Brasil são, portanto, muito relevantes, e ainda nem se entrou no debate sobre a Lei do SeAC e as eventuais restrições regulatórias. De outro lado, o próprio Cade reconhece que o mercado de TV paga brasileiro é demasiadamente concentrado, e o remédio para evitar aumentar esta concentração pode piorar ainda mais o quadro.
Fonte: Teletime News de 4 de setembro de 2017, por Samuel Possebon.