Nos últimos dois anos e meio, a secretaria de telecomunicações, órgão responsável pela formulação de políticas setoriais, ficou sob o comando de André Borges, um advogado com mais de 30 anos de experiência na inciativa privada, a maior parte em empresas de telecomunicações. Nesta entrevista de despedida, ele faz um balanço desta experiência e aponta uma série de entraves e dificuldades que, na sua perspectiva, poderiam ter melhorado a relação entre empresas e governo. Ele também avalia as principais políticas públicas que foram ou tentaram ser implementadas e as amarras do próprio governo.
Teletime – Finalmente, no fim de sua gestão, saiu o decreto de Políticas de Telecomunicações. Como ele dialoga com os diferentes papeis da Anatel e do MCTIC e o que ele deixa para o próximo governo?
André Borges – Da nossa parte, nunca houve nenhum interesse de ter qualquer ingerência sobre a Anatel. Mas o ministério tem que cumprir o seu papel de formulador de políticas públicas, e nesse sentido é preciso, especialmente, dar os direcionamentos do que precisa ser feito na área de telecomunicações. A Anatel não faz isso, ela regulamenta. A agência, até diferente do que alguns conselheiros disseram em alguns votos, tem sim que cumprir o senso de oportunidade do governo. Isso é fazer política pública. Se o governo dá o norte e a Anatel faz quando quer, ou ignora, é o mesmo que desobedecer. O governo eleito sempre vai dar o caminho e a Anatel, como órgão técnico, está lá para fazer as normas e revisá-las.
Você sentiu que a secretaria foi ignorada em algum momento, seja pela agência, seja pelo mercado?
Não entendo, mas estas questões de competência sempre geram atritos, difícil funcionar em perfeita harmonia. As pessoas vão acertando e errando de um lado e de outro, e isso precisa ser permanentemente corrigido. Idem em relação às empresas. Parece que elas não tem muita clareza em relação ao papel de um ou de outro. Um exemplo: logo no início de nossa gestão recebemos uma grande comitiva de empresas e do SindiTelebrasil com uma pauta vastíssima, mas toda ela era da Anatel. Há assuntos específicos que estão no âmbito da regulamentação. O que o governo pode fazer e fez no decreto de políticas é dar o direcionamento, dizer que é preciso desregulamentar, que a onerosidade da regulamentação tem que diminuir com base em estudos de impacto. Quando se estabelece compartilhamento, deve-se seguir determinada regra de remuneração. Ou quando se licita frequências, que isso seja com foco no desenvolvimento dos serviços, e não na arrecadação. Isso está tudo lá nas políticas, e são medidas saudáveis hoje e amanhã.
Mas com a demora na publicação do decreto, perdeu-se a chance de cobrar a implementação destas políticas, porque elas saíram nos últimos minutos de governo.
Sim mas, novamente, nunca estivemos preocupados em ter algo alcançável em uma gestão, na nossa gestão. Como não existe recursos por trás da política, não estamos implementando nada mais contundente, mais eficaz.
Sobre este episódio da recuperação da Oi, sua opinião é que ainda há a necessidade de atenção do futuro governo? O problema está resolvido?
Acho que não, mas está melhor encaminhado. Foi um primeiro passo importante e não me parece que seja necessária uma saída de governo, como aliás não aconteceu. Fomos facilitadores, buscamos alternativas, mas nenhuma delas foi concretizada. O governo não interferiu na recuperação. A Oi conseguiu chegar onde chegou pelos seus próprios méritos e pela atuação da Justiça.
E o Plano Geral de Metas de Universalização, que está dois anos atrasado (N.A: o plano foi publicado no dia seguinte à entrevista)?
Ninguém colaborou para que saísse antes, essa é a verdade. Se de um lado é verdade que as empresas criticam, com razão, o gasto desnecessário com a manutenção de metas de TUPs, de outro não colaboraram na definição de metas alternativas. Aí dizem que não haveria a necessidade de metas alternativas. Isso não tem como ser feito. O pressuposto do que veio da Anatel para o ministério é que existe um equilíbrio no contrato e, assim, qualquer coisa que se mude em favor das operadoras precisa ser ajustado. Não haveria razão de conceder este benefício às operadoras a troco de nada, seria fazer uma doação. Talvez as obrigações alternativas não sejam ótimas, mas é difícil achar uma melhor. E esse ajuste tem que ser feito, porque traz uma economia para as empresas que será revertida em benefício do interesse público. Se esperarmos até 2025 para achar o ótimo, o saldo vai ser zero. Mas voltando à demora, num primeiro momento elas impugnaram formalmente o ato e os saldos apontados pela Anatel, não reconheceram qualquer saldo… Se as empresas, que são interessadas, não reconhecem nada, não dá para avançar. Poderíamos até estancar os encargos e aguardar um tempo para o desenho destas metas, mas o ministro não aceitou esta situação, de dar um benefício sem uma contrapartida imediata. E ele tem razão, poderia ficar frouxo. E o que foi construído veio de conversas com o setor.
O deputado Daniel Vilela, autor do PLC 79, criticou o próprio setor em uma falta de proatividade para a aprovação do projeto. Qual a sua avaliação?
Não se pode dizer que o PLC não foi aprovado por causa disso. Fala-se que o projeto não foi aprovado por causa da narrativa, que não foi aprovado pela falta de projetos… Mentira. O PLC 79/2016 não foi aprovado porque ficou preso na mão de uma pessoa com poder político suficiente para poder fazer isso. A crítica ao setor feita pelo deputado é mais em aspectos episódicos e pela falta de planejamento e coordenação, talvez. A desunião do setor sem dúvida enfraquece o processo. Uma das bases do projeto é o financiamento de políticas públicas partir da adaptação das concessões, mas nada do que foi tentado de maneira similar nestes anos deu certo, por resistência das próprias operadoras. Houve brigas públicas sobre os TACs, sobre os saldos do PGMU… Quem é que vai acreditar que com a mudança de concessões para autorizações o setor vai se entender em relação aos investimentos? É difícil de acreditar.
Mas o PLC 79 é mais amplo do que os investimentos que serão feitos com a adaptação das concessões.
Sem dúvida, tem a possibilidade de renovação das concessões e frequências, o mercado secundário, a concessão de posições orbitais sem licitação… É um projeto equilibrado, que favorece a todos na competição, desenvolvimento, investimentos. A adaptação, de fato, é importante, mas eu mesmo tenho dúvidas se gerará os resultados esperados, porque haverá muita confusão na hora de calcular os valores. Vai ser muito difícil chegar a um consenso. Depois vem um regulamento, que eventualmente será impugnado. Supondo que tudo isso seja superado, a operadora, se estiver descontente do valor, não faz a adaptação e não se tem política pública.
Então, sem recursos, não haverá política pública?
Isso se olharmos para o lado da universalização da banda larga é verdade. Existem outras políticas que podem ser implementadas, mas que também precisam de alguma fonte de recursos. Por exemplo, regimes especiais precisam de custeio, como o regime especial de datacenter que a gente desenhou mas não pôde implementar, ou a isenção de IoT, que também não andou. A isenção das VSAT, que vigeu de 2012 a 2018 e nunca beneficiou um centavo, é uma lei cuja regulamentação foi tentada um monte de vezes sem sucesso. Quando entramos já tinha uma proposta na Casa Civil, voltou. Mandamos de novo, mexemos, foi feito um grande trabalho pela aprovação, mas terminava sempre na questão de qual seria a fonte de custeio para bancar a perda de arrecadação.
E o RE-PNBL? Que inclusive está agora sendo cobrado das empresas?
Nós tentamos fazer a regulamentação do RE-PNBL e tentamos fazer um novo RE-PNBL, mas nunca foi adiante pelas mesmas razões: falta de recursos para custeio da desoneração. O questionamento agora tem outro motivo: os modelos de políticas públicas geram problemas porque existe uma burocracia tão pesada que nenhuma grande empresa precisa cumprir. Tem que ter a nota com o carimbo X, controle de que o que foi comprado seja instalado exatamente onde estava previsto no projeto, uma coisa de louco.
Qual o tamanho que fica desse problema? Quanto as empresas vão ter que resolver?
Eu espero que não precisem devolver nada, mas de acordo com a regulamentação estrita a maior parte dos projetos não vai ser aprovada, e isso dá uma fortuna, um número que envolve o grosso dos benefícios auferidos.
E o Internet para Todos?
É uma situação bem diferente e esse é um projeto que está sendo implantado e que vai ser um sucesso, sem soluço. Mesmo a iniciativa privada vai embarcar. Todo mundo acordou para a possibilidade de explorar o segmento de baixa renda em localidade remota, e se possível vincular com alguma outra coisa que a empresa faça no âmbito rural.
Mas e o risco de que lá na frente se questione o benefício da isenção de ICMS?
Entendemos que é mínimo, até porque os Estados estão comprometidos com o Internet para Todos, eles apoiam, assim como todas as prefeituras de todo o país. Politicamente é um programa com muita solidez. Claro que o Confaz pode rever o benefício lá na frente, mas será para o futuro. O Internet para todos está em fase de implantação e vai decolar com certeza, porque se ninguém fizer a Telebrás e a Viasat com certeza irão.
Falando em Telebras, você entende que a determinação do TCU de determinar a revisão do contrato com a Viasat gera alguma incerteza em relação à parceria ou mesmo à estabilidade das regras do país para investidores externos?
É uma revisão mínima mas é uma coisa ruim sim. Não ajuda no investimento externo porque gera incerteza. Qualquer contrato pode ser melhor, mas até que ponto o contrato seria fechado em outras condições? É um ajuste desnecessário porque as duas partes entenderam que estava bom, o resultado era positivo e havia equilíbrio. Se você exagera, lá na frente o contrato dá errado. Vi isso dezenas de vezes na iniciativa privada. Por isso, pessoalmente, discordo da decisão do TCU, porque entendo que o contrato fechado estava perfeito. Se desequilibra, uma das partes pode cair fora. E mais: as economias ou ganhos para a Telebras que serão conseguidos com essa renegociação dificilmente vão pagar o atraso causado pela espera na decisão.
Mas não foi só o TCU que atrasou, teve questionamento na Justiça…
O atraso se deve muito ao período de análise do TCU. O SindiTelebrasil não conseguiu liminar e nunca terá. A Via Direta teve sucesso por algum tempo mas esse erro foi corrigido pelo Supremo. O episódio como um todo não fortalece a mensagem de segurança e credibilidade que o país quer passar para quem busca investir aqui, em especial considerando que o governo é o parceiro. Mas sabemos que assim é o Brasil. Houve muita precipitação e imaturidade de todos. Mas no fim o importante é que a decisão do TCU é boa, valida o modelo de negociação direta. Temos uma vacina contra problemas futuros.
Como você avalia o papel da Telebrás e o que fica para o governo que está chegando?
No decreto de Políticas não mudamos nem uma vírgula no papel que estava previsto para a estatal quando ela foi recriada, porque os objetivos dela estão corretos. O papel da Telebrás em relação a investimentos em infraestrutura crítica e estratégica foi bom e está ficando cada vez melhor na medida em que se busca sustentabilidade deste investimento. Um país como o Brasil, com a situação de rede e capilaridade, não pode abrir mão desta alternativa, e a banda Ka é uma alternativa de alta capacidade e total abrangência. O que ainda está mal equacionada é a questão do atendimento ao governo e da rede privativa. Em relação ao Decreto 8.135/2013, que trata da segurança da informação e a segurança da informação de governo, é preciso entender melhor se existe a necessidade desta segurança, onde e se ela se aplica. Entendo que isso é algo que precise ser melhor desenvolvido para que as contratações sejam efetivamente rentáveis ao governo. Essa sempre foi a minha posição, mas não necessariamente a do MCTIC, que buscou dar tempo e fôlego para a Telebrás se viabilizasse. Mas em resumo, vejo o papel da Telebras bem desenhado e o modelo do SGDC excelente para o país.
Os recursos investidos no satélite, se tivessem sido colocados em algum outro lugar, teriam gerado resultado melhor?
Entendo que não. A iniciativa privada não compareceu nem nunca quis comparecer para suprir essa lacuna. O governo tem que ocupar um espaço onde a iniciativa privada não vai. O que ele não pode é concorrer com a operadora privada, até porque ele perde a disputa na largada. Mas onde as operadoras não vão ele, governo, tem a obrigação de ir.
Ficou uma área cinza que é a iniciativa de atendimento próprio governo…
Entendo que todas as vítimas de alguma maneira se colocaram nessa situação. Se o relacionamento das operadoras com o governo fosse muito bom, se o contrato fluísse muito bem, sem soluços, sem acusações, ninguém nunca ia pensar em entregar isso para a Telebrás. Teve o episódio do Snowden que teve um peso. Tem o interesse militar e a questão da soberania nacional que não tem o que se questionar. Mas se a iniciativa privada tivesse sido mais parceira desde o começo, dando mais tranquilidade às Forças Armadas e ao governo, não teria acontecido o SGDC.
Faltou parceria?
Talvez, mas quem tem que pensar priorizando o interesse público de fato é o governo. Não participei do começo do projeto SGDC, mas minha impressão é que o governo atirou no que viu e acertou no que não viu, até porque não tinha um plano de negócio muito claro. Muitas destas pessoas que estavam lá na origem do projeto estão ai ainda e são profissionais de grande respeito.
Como você avalia, depois desta sua experiência no serviço público, o time do governo que vem tocando as políticas públicas de telecomunicações praticamente desde o governo Lula?
É um time muito bom, estão alinhados e são bem estruturados. Têm uma visão de futuro bem consolidada e sabem o caminho de implementação de novas políticas. O que falta é um pouco mais de estrutura, é uma equipe enxuta, mínima, que acaba ficando muito dependente da Anatel, quem tem esse papel de instruir o ministério. Um bom exemplo é o decreto de Políticas de Telecomunicações e o Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações. São projetos que nasceram na mesma origem e caminharam paralelamente e que se complementam.
A mim parece que tanto o PERT quanto as políticas endereçam muito mais lacunas do passado do que uma agenda futura…
Discordo. Não tem nada de passado sendo endereçado no decreto de Políticas de Telecomunicações. É uma agenda de futuro para o que precisa ser desenvolvido no médio e longo prazo. Estamos acompanhando o que está sendo feito e o que precisa ser realizado para a chegada do 5G, estamos olhando muito para o cenário de Internet das Coisas, todas as agendas de futuro estão endereçadas. O que precisa acontecer ainda é uma força tarefa para a implementação das normas municipais adequadas para a lei das antenas. Mas são 20 ou 40 municípios críticos em que se resolve mais de 90% do problema. As pequenas cidades vão no embalo. Só existem duas situações: ou o cara tem antena e não quer, ou não tem antena e quer. O que não tem antena está mais consciente do problema. O que já tem infraestrutura goza do serviço, mas precisa entender que a qualidade depende da expansão de capacidade, que sobre esta rede há um mundo de IoT e novos serviços que vão gerar receita.
E a questão tributária? Até hoje o Plano de IoT não saiu por conta disso.
É verdade, mas no que diz respeito ao ministério, nós estamos totalmente alinhados e apoiamos a visão da necessidade de uma desoneração, e isso foi manifestado em notas técnicas e em estudos que nós apresentamos.
A crítica que se faz não é ao MCTIC necessariamente, mas ao governo que não consegue ter essa visão estratégica sobre o papel do setor no desenvolvimento.
De fato, falta essa visão estratégica. Mas é um processo que envolve as operadoras e o ministério. Todo o setor tem que chamar a atenção desta necessidade. A pauta de comunicação não está nem sendo muito falada no novo governo, não aparece nem no nome do ministério. É uma questão de conhecimento. Se a sociedade não olha para isso ou assume isso como dado, não melhora. Cabe ao setor parar de brigar entre si e mostrar que a sociedade tem a ganhar com esta agenda, porque tudo melhora com conectividade, qualquer aspecto da vida.
Mas cabe ao governo também ser um fomentador do uso das TICs…
Isso está no radar, está sendo feito em várias áreas. O que as pessoas muitas vezes não enxergam é que o governo está trabalhando e está fazendo muita coisa nessa área digital, mas não conseguiu ainda fazer com que esta agenda estivesse no centro das atenções, em conjunto com outras coisas importantes. Ainda não estamos no nível adequado de prioridade. A Telefônica, por exemplo, lançou recentemente o manifesto digital, do qual eu assinaria embaixo. Mas tem um mundo de coisas ali que o governo já fez, inclusive com altíssima qualidade. Olhe a Estratégia Digital, o Plano de IOT… Por que o setor não parte destas iniciativas? Não foi por falta de convite. Eu diria que nós mais procuramos o setor do que fomos procurados por ele. As empresas têm muito mais a contribuir e o governo tem muito mais a contribuir, porque há pessoas muito competentes dos dois lados. Mas há muito a melhorar nesse relacionamento, tanto defendendo os interesses da iniciativa privada quanto defendendo o interesse público. Só que as conversas precisam ser de alto nível, com maior integração e melhor coordenação.
E em relação ao seu futuro?
Eu deixo o governo dia 31 de dezembro. Estou ainda em alguns conselhos: Telebrás, Funttel, CPqD e Conselho Consultivo da Anatel. Telebrás e Funttel eu quero sair o quanto antes, e é natural que essa troca aconteça logo. O Conselho Consultivo da Anatel está parado, mas eu gostaria de continuar para ajudar a reativá-lo, levando discussões saudáveis e relevantes para lá. De qualquer maneira, esta experiência no governo foi muito rica e me permitiu entender coisas que em anos de iniciativa privada eu sempre tive dificuldade de compreender sobre o funcionamento do Estado.
Fonte: Teletime News de 21 de dezembro de 2018, por André Borges.