A Anatel está perdendo o seu protagonismo como regulador do setor de telecomunicações para o Tribunal de Contas da União (TCU), e isso mostra uma crescente fragilização estrutural do modelo regulatório pensado para o setor.
Uma rápida consulta nas notícias dos últimos 12 meses mostrará que questões importantes típicas da esfera da agência, como o tratamento dos bens reversíveis, a celebração dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) com as empresas, a atuação da agência no processo de recuperação financeira da Oi, a reavaliação periódica dos contratos de concessão, as franquias da Internet móvel e fixa, o compartilhamento de infraestrutura entre as empresas, regras dos leilões de espectro e até mesmo o controle de arrecadação dos fundos setoriais foram objeto de manifestações, acórdãos ou cautelares do tribunal. Esta semana, o TCU deve julgar o acompanhamento que a Anatel faz da qualidade dos serviços móveis, em decorrência de uma auditoria iniciada há pouco mais de um ano.
A atuação do TCU e dos outros órgãos de controle, como Ministério Público e a antiga CGU (hoje Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle) é saudável e faz parte de um movimento de pesos e contrapesos na atuação dos entes públicos, especialmente das agências reguladoras, que devem ser autônomas e orientadas por referenciais técnicos, mas precisam ficar atentas ao constante risco de captura e às boas práticas da administração pública.
Mas há fortes evidências de que esse equilíbrio esteja descompensado, e que hoje os órgãos de controle estejam influenciando mais na definição das questões setoriais do que o trabalho da própria agência. No começo deste mês, durante o Seminário da Associação Brasileira de Direito das Tecnologias da Informação e das Comunicações (ABDTIC), o advogado Eduardo Ramires, que há anos acompanha o setor de telecom, verbalizou aquilo que empresas e Anatel falam nos bastidores: "O TCU ficou muito grande, famoso, suas decisões são propaladas e pouca gente compreende na natureza técnica delas, e isso gera medo que impede as pessoas de tomar decisões. E para que servem agentes públicos que não possam tomar decisões e assumir responsabilidades? Precisamos recuperar o espaço de deliberação do administrador, sem transferir a decisão para o Tribunal de Contas", disse o advogado.
O fato é que é sintomático que hoje a Anatel esteja mais preocupada em saber a posição do TCU antes de tomar as suas decisões do que buscar o Congresso ou o governo, que são os formuladores de políticas e que supostamente deveriam dar as diretrizes e prioridades da atuação (técnica) da agência.
Esta preocupação decorre do simples fato de que a agência é movida por servidores, a maior parte de carreira, e qualquer servidor teme carregar um processo administrativo por anos, pelo qual pode ser responsabilizado na pessoa física, sem nenhuma garantia de que o Estado ou o seu órgão de origem assumirão a responsabilidade (e os custos) por sua defesa. O mesmo vale para a fiscalização exercida pelo Ministério Público e pela CGU, sem falar nas pressões e cobranças do Congresso e do Judiciário que também chegam à agência diariamente. A Anatel é hoje uma autarquia autônoma por lei, mas que na prática age, antes de tudo, para se defender e evitar problemas com os órgãos de controle.
O problema do sistema de controle que se criou no Brasil é que ele não é necessariamente coerente. Não se pode dizer que o foco do TCU ou do MPF seja necessariamente a defesa do consumidor, ou a liberdade de empreendimento, ou a preservação do patrimônio público. A cada decisão a balança pende para um lado. Às vezes, na mesma decisão, a ordem é regular mais e menos ao mesmo tempo. Muitas vezes o rigor se dá apenas em torno de determinações burocráticas estabelecidas em normas e regulamentos que se tornaram anacrônicos, mas que não são alterados justamente por medo desta fiscalização e dificuldade de colocar em prática ideias mais inovadoras e flexíveis em um ambiente de medo institucional.
A Anatel perdeu o protagonismo muito por sua própria culpa, mas também há muita responsabilidade dos governos e do próprio setor de telecomunicações nesse processo. A agência demorou para modernizar seus referenciais regulatórios, sua estrutura e sua base de informações setoriais; pouco fez para lutar pelo fortalecimento da carreira de seus servidores; tornou-se refratária às críticas da sociedade e foi tímida e relutante nos seus posicionamentos. O governo, afogado na briga eterna entre o Tesouro e as áreas finalísticas (se é que no Brasil existe algo que seja mais finalístico do que as finanças públicas), nunca conseguiu imprimir uma linha clara do que queria da agência. E as empresas ora queriam uma Anatel independente, ora buscavam resolver seus problemas na base da canetada política. Enquanto isso, o TCU e os demais órgãos de controle ganharam espaço, sem o contraponto de uma agência setorial forte.
O momento político, pelo menos no discurso, é liberalizante, voltado para a atração de investimentos, e desregulamentação virou a palavra da vez. Resta saber como esse impulso sobreviverá aos inevitáveis acórdãos que virão.
Fonte: Teletime News de 12 de setembro de 2016, por Samuel Possebon.
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