Enquanto o PLC 79/2016, que muda o modelo de telecomunicações, tem sido tachado pela oposição de "projeto das teles" ou "presente para as operadoras", as teles, nos bastidores, mostram muito mais preocupação e dúvidas sobre as futuras implicações do projeto do que um alívio efetivo com sua eventual aprovação. Sabem que existe uma grande quantidade de variáveis e contas a serem feitas pela Anatel com consequências bastante significativas. Obviamente, o setor apoia o projeto, pois ele avança sobre obstáculos do modelo atual, como a manutenção das concessões e as renovações de espectro. Mas isso não quer dizer que não haverá divergências severas na interpretação entre o que o PLC 79 estabelece e como isso será feito.
Um primeiro ponto de divergência entre as empresas de telecomunicações e a Anatel (e o TCU) está na própria compreensão do que são os bens reversíveis. A Anatel adota, há alguns anos, uma visão essencialmente patrimonialista em relação aos bens. Ou seja, a visão de que o patrimônio existente precisa ser preservado para, eventualmente, ser revertido à União, assegurando a prestação dos serviços.
As empresas sempre contestaram esta visão junto à Anatel, tanto que até hoje o caso mais emblemático, que trata da alienação do antigo edifício-sede da Telefônica em São Paulo (na rua Martiniano de Carvalho), continua pendente de recursos. Quando a Oi entrou em recuperação judicial, uma das primeiras medidas da agência foi soltar uma cautelar impedindo a alienação de qualquer ativo pela empresa (reversíveis ou não).
A base legal usada pelas teles para convencer a agência de que esta visão patrimonialista é equivocada está na própria Lei Geral de Telecomunicações, que fala expressamente em seu artigo 102 que a reversibilidade se dá na forma da transferência de posse, e não da propriedade, dos bens. Quando o Sistema Telebrás foi vendido, aliás, a União alienou apenas 16% do capital das empresas, ações estas que asseguravam o controle, pois o resto já estava na mão de investidores privados, pulverizado na Bolsa de Valores.
Bens reversíveis e fim das concessões: precedentes
Mas para além deste aspecto, há um argumento histórico, que deve ser muito mais forte no convencimento inclusive do TCU, por exemplo: esse mesmo debate sobre bens reversíveis e o fim das concessões já aconteceu entre 2001 e 2004, quando a Anatel (sem que fosse mudada nenhuma lei) criou o Serviço Móvel Pessoal (SMP) e promoveu a migração do extinto Serviço Móvel Celular (SMC) para o novo serviço. O SMC era prestado sob o regime de concessão, e como tal tinha inclusive bens reversíveis a ele atrelados. Em 2009, conforme o Acórdão 2.275/09, o Tribunal de Contas da União avaliou que não houve "prejuízo ao erário em decorrência da transferência dos bens reversíveis das concessionárias de SMC para o patrimônio das autorizatárias de SMP" e que "a reversibilidade de bens não tinha por finalidade ressarcir ao Estado os bens adquiridos ou produzidos com recursos públicos mas, sim, garantir a continuidade da prestação dos serviços por parte dele no caso da extinção da concessão, o que não foi necessário no presente caso, pois, com a transformação das concessões de SMC em autorizações de SMP, não houve a descontinuidade da prestação dos serviços de telecomunicação". Quem escreveu isso foi o ministro Augusto Nardes, ainda hoje ministro do TCU. Na época, a Anatel fez as contas e concluiu que se os bens reversíveis das operadoras de SMC tivessem que voltar à União, o valor de indenização superaria os R$ 10 bilhões. É verdade que uma das base da análise do TCU naquela ocasião é que não havia previsão legal de universalização e continuidade do serviço móvel, e mesmo assim isso foi assegurado com o SMP. Não é o caso da telefonia fixa, cuja universalização e continuidade estão previstas em lei, ainda que seja um serviço seja cada vez menos utilizado.
Quanto vale?
Outro ponto do PLC 79 em que a interpretação da Anatel deve ser bastante divergente em relação ao entendimento das empresas diz respeito ao peso que os bens reversíveis terão na conta de transição para o novo modelo. O PLC 79/2016, se aprovado da maneira como está, estabelece que caberá à Anatel determinar o cálculo do valor econômico da adaptação das concessões em autorizações, e que este cálculo considerará como bens reversíveis os "ativos essenciais e efetivamente empregados na prestação do serviço" e ainda que "os bens reversíveis utilizados para a prestação de outros serviços de telecomunicações, explorados em regime privado, serão valorados na proporção de seu uso para o serviço concedido". Este valor econômico, segundo o projeto de lei, "será revertido em compromissos de investimento, priorizados conforme diretrizes do Poder Executivo" e que terão ênfase na "implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades". Suponha-se que os bens reversíveis sejam valorados pela Anatel por um valor patrimonial de R$ 105 bilhões, como sustenta a oposição. Se for isso, nenhuma concessionária de telecomunicações vai migrar para autorização, pois teria que fazer um investimento proporcional muito além da média anual de investimentos do setor. Ou, numa hipótese ainda pior ao governo, a concessionária poderia optar por devolver a concessão, e assim receber a quantia. Para uma concessionária com as dificuldades hoje vividas pela Oi, esta possibilidade pode ser tentadora.
Mas o argumento das teles para evitar uma sobrevalorização dos bens reversíveis deve ir por outro caminho. Na argumentação das empresas, o fim dos bens reversíveis simplesmente não traz benefícios para as concessionárias porque não impacta o valor da exploração dos serviços, uma vez que o STFC continuará existindo e sendo prestado, sobretudo em áreas não rentáveis. Na conta das empresas, o que trará benefícios é o fim do ônus da concessão (pagamento de 2% a cada dois anos sobre a receita bruta), o fim das metas de universalização e eventualmente a perpetuidade da autorização (ainda que o valor das receitas com STFC esteja decrescendo). Para as empresas de telecomunicações, como não existe incorporação do patrimônio, uma vez que a propriedade de bens reversíveis como prédios, terrenos, redes etc já é delas, não existe nenhum ganho e, portanto, o fim da reversibilidade não trará saldo positivo. Há, é claro, um ganho com a liquidez que os bens passam a ter mas, de novo, este benefício já existe se prevalecer a tese das empresas de que o que é reversível não é o patrimônio, mas o uso que se tem dele.
Mais uma vez, o argumento para sustentar essa posição é histórica: na época da privatização, em 1998, a avaliação não foi feita pelo valor contábil do patrimônio da Telebrás, mas sim pelo cálculo de valor presente da prestação dos serviços, da mesma forma como se pretende calcular agora. E mais uma vez há acórdãos do TCU validando esta metodologia. É o caso da Decisão 464/1998. Vale lembrar que a Anatel também está se espelhando na metodologia de venda da Telebrás em 1998 e cogita até mesmo contratar consultorias para fazer esse cálculo, validando o processo etapa por etapa com o TCU.
Dia seguinte
O Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações já se manifestou em algumas ocasiões reiterando que não pretende usar valor de bens reversíveis na conta da transição. Os recursos que o governo espera ter para as futuras política de banda larga viriam do valor presente das autorizações e os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) referente às multas com a Anatel. Somando-se as duas coisas, a estimativa é de um montante chegando na casa dos R$ 20 bilhões, e nada mais, a não ser que se consiga mexer no contingenciamento dos fundos setoriais, algo pouco provável. O governo sabe que os recursos serão insuficientes, mas ao mesmo tempo sabe que não adianta pressionar as empresas durante os cálculos com valores irreais porque, como a migração ao novo modelo é voluntária, elas podem simplesmente ficar como estão.
Por fim, o outro ponto de divergência entre as empresas de telecomunicações e o "dia seguinte" do novo modelo, caso ele venha a ser adotado na forma atual em tramitação no Congresso, diz respeito a onde os recursos serão aplicados. Empresas que não têm concessões, como a TIM, preocupam-se que o governo privilegie as atuais concessionárias nos investimentos que serão feitos com os recursos decorrentes da migração, fechando às demais operadoras. Outras empresas, sobretudo as operadoras competitivas, também se preocupam com o eventual "feriado regulatório" que seria dado às concessionárias ao celebrarem os Termos de Ajustamento de Conduta com a Anatel. Ou seja, ao fazerem os TACs, as concessionárias ganhariam a oportunidade de fazer investimentos e ainda ficariam, pelo tempo de vigência do acordo, dispensadas do cumprimento de algumas obrigações.
Evento
No dia 14 de fevereiro, em Brasília, a TELETIME e o Centro de Políticas de Comunicações da Universidade de Brasília organizam o Seminário Políticas de (Tele) Comunicações. Entre os temas, a metodologia da Anatel para fazer o cálculo do ajuste do modelo baseado em concessões para o modelo de autorizações, assim como as perspectivas de políticas públicas a serem implantadas com este saldo remanescente. Mais informações pelo site do evento.
Fonte: Teletime News de 7 de fevereiro de 2017, por Samuel Possebon.
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