Desde o final de 2016, a AT&T está às voltas com a complexa situação de enquadrar a compra da Time Warner (hoje Warner Media) no marco legal da TV por assinatura no Brasil, a Lei do SeAC (Lei 12.485/2011). A lei restringe, em seu artigo 5, que empresas de telecom (como a Sky, controlada pela AT&T) controlem empresas de conteúdo brasileiras, e vice-versa. E restringe, no artigo 6, que o grupo de telecomunicações adquira direitos e talentos nacionais. Mesmo tendo aprovado a operação sob a ótica concorrencial, a empresa enfrenta um cenário turbulento, intensificado com a informação de que a área técnica da Anatel tem restrições à fusão. Uma decisão do colegiado da agência é esperada ainda para o primeiro semestre. Nesta entrevista, Michael Hartman, Senior Vice Presidente e Assistant General Counsel da AT&T, e General Counsel da Vrio (holding controladora da Sky), defende a posição da AT&T e alerta para as consequências das decisões que a Anatel terá que tomar, a situação vivida pela empresa no Brasil diante deste processo e os possíveis desdobramentos do caso. Hartman não restringe a sua análise ao seu próprio pleito, mas analisa ainda a combinação com outra discussão importante que a Anatel conduz, sobre uma disputa da Claro contra Fox e Turner pelo modelo de venda de canais lineares e ao vivo pela Internet, com a cobrança de assinatura.
TELETIME – A AT&T entende que com a legislação atual de TV por assinatura é possível acomodar a operação de compra da Warner Media?
Hartman – Primeiro precisamos separar o que é a necessidade ou não de modificar a lei e a necessidade de implementar a lei que existe. É importante dentro do setor e para o regulador separar as coisas. Acho que ao regulador é possível, dentro do que está escrito, interpretar a lei dentro da necessidade do mercado atual. Até onde isso pode ser feito é um desafio para a Anatel.
Esta semana ficou público o conteúdo do informe técnico da Anatel sobre isso, e eles entendem que não é possível acomodar.
Foi publicado por vocês e outros jornalistas, mas nós ainda não tivemos acesso porque está confidencial.
Se prevalecer esse entendimento, depois da análise jurídica e da decisão do conselho, qual seria a saída para vocês?
Primeiro, ainda estou surpreso com esse debate, sendo muito honesto. Faço um aparte sobre a forma como chegamos nesse momento. Durante a revisão antitrust da operação, sempre dissemos que a análise regulatória deveria ser separada da concorrencial, e isso foi aceito pelo Cade. A gente não se posicionou sobre esse tema regulatório, mas os opositores já vieram ao mercado falar que tinha problema de violação do artigo 5 da legislação. As procuradorias da Anatel e Ancine também fizeram essa revisão da lei sem que a gente colocasse a nossa visão. Todos acabaram se manifestando sobre a questão regulatória exceto a gente, até agora. Então, fico surpreso.
Mas qual é o entendimento de vocês sobre o que a lei permite e o que ela não permite?
Se você ler o que está escrito, a linguagem da lei está clara e simples. O artigo 5 (que restringe a propriedade cruzada) faz referência às programadoras com sede no Brasil. Não é um erro de redação da lei. Existe desde sempre uma distinção entre programadores internacionais e os programadores com sede no país, que têm modelos distintos. Tanto que as cotas de TV paga existem para orientar os programadores internacionais a adquirir mais conteúdos locais. Então, o que se tem é a linguagem clara do artigo 5, e um conceito pré-existente e justificado no modelo de desenvolvimento do mercado audiovisual, que sustenta e dá razão à nossa leitura de que os programadores internacionais não estariam no escopo do artigo 5. A gente fica surpreso com as interpretações da Abert sobre isso. Ainda não vi a posição da superintendência de competição da Anatel, mas a da Abert, que recorre ao artigo 9 para se sustentar, é bastante ruim. É uma leitura confusa, rebuscada, e que se for verdade, é como dizer que a intenção da Lei do SeAC foi eliminar o conceito de programador internacional para dizer que todos são nacionais. Com isso, a Condecine, que só existe para os programadores internacionais, teria deixado de ser cobrada. Esse entendimento é muito difícil para mim, muito complexo e inconsistente. Falta debate sobre isso.
A posição de vocês já foi manifestada sobre isso no processo?
Fizemos uma manifestação para a superintendência de competição, mas existem declarações equivocadas, de que a gente quer burlar a lei, o que não é verdade, e que a gente entenderia que a Lei do SeAC não se aplica sobre nós. Também não é verdade. Reconhecemos que a cota de programação se aplica ao programador internacional. O artigo 6 (que restringe a aquisição de direitos de interesse nacional) se aplica ao programador internacional quando está integrado a um grupo de telecomunicações. A questão para o regulador é se o escopo do artigo 5 pune os programadores internacionais. Estamos aguardando saber a posição deles dentro do processo em que a gente possa ser ouvido.
Você mencionou a questão dos direitos. A Turner é detentora de direitos do Campeonato Brasileiro, o que em tese fere o artigo 6 da lei do SeAC.
De fato, existe uma limitação para adquirir direitos, mas nesse caso os direitos estavam adquiridos quando a operação de compra pela AT&T foi feita. A Turner está revendo algumas de suas estratégias, então acredito que eles vão fazer todos os ajustes que forem necessários, se entenderem que é uma decisão justa e da melhor forma para o consumidor.
Recorrer à Justiça é uma opção para a AT&T caso as decisões sejam desfavoráveis?
Não sei, imagino que seja possível, mas estamos confiando muito no processo. Nosso foco é participar da revisão regulatória, colaborar com o regulador, Anatel ou Ancine, e acreditamos que a gente possa prevalecer na interpretação da lei. Se não for o caso teremos que ver como cumprir com a decisão.
A solução para este caso é drástica, porque significa tirar a AT&T do controle da Sky, seja por venda da operação ou custódia das ações. Existe mercado para uma alternativa de venda? O que fazer nesse caso?
A forma como vejo isso, se a decisão da Anatel ou Ancine for de que a fusão não é possível, ficaremos num dilema de "Escolha de Sofia". Acho que o regulador não vai dizer "venda a Sky", mas pode dizer "cumpra com a lei desinvestindo em algumas das empresas", fechando negócios. De um lado estão a Sky e a nossa operação da AT&T para o mercado corporativo, e do outro lado os canais Turner. E tem a HBO, mas ali é um pouco diferente porque a Warner Media não tem o controle da operação. Então teria que fazer essa análise. Mas de qualquer forma, como fazer? A AT&T teria que tomar e seria super drástica, olhando principalmente do ponto de vista do consumidor. Ele perderia ou uma opção de TV paga ou canais que interessam muito para audiência. Ou seja menos escolha. E mesmo do ponto de vista da produção de conteúdo, pode-se perder uma opção de comprador. E de qualquer forma seria um sinal muito pessimista para os investidores estrangeiros no Brasil.
Por que? Afinal, é uma questão de cumprir a lei, se a interpretação for essa.
Olhando a nossa indústria, os modelos estão mudando muito, de forma drástica. Uma consequência é que todos estão investindo para se adaptar. De um lado Netflix, Amazon e todos os ouros investindo para prestar serviços e produzir conteúdos, e de outro os incumbentes como Sky/AT&T, programadores, investindo em modelos novos, novas plataformas, novos conteúdos. Tudo isso pela competição de serviços atrativos criados na Internet. Se você diz que essa tendência global não pode existir no Brasil, é uma mensagem para qualquer empresa de conteúdo, de telecom, de meios, de que não deve se aproximar do Brasil. Essa é minha visão pessoal. Mas vemos que as consequências para nós, para o consumidor, para o mercado de produção e para a imagem junto aos investidores será muito drástica sem dúvida. E para que? Qual o benefício? É preciso interpretar a lei pelos seus objetivos regulatórios, e imagino que o regulador olhe pelas tendências do mercado e pelo interesse do consumidor. E a nossa interpretação parece mais alinhada com esses aspectos do que a outra, que é protecionista e anacrônica.
O Brasil é o último país com análise pendente na fusão da AT&T com a Time Warner?
Nos EUA, o Departamento de Justiça acabou de perder a apelação (N.A – A entrevista foi concedida no dia 26 de fevereiro). Então, a não ser que eles recorram para a Suprema Corte, o que é improvável, só falta a decisão brasileira para alguma pendência, apesar de a operação estar fechada.
Existem decisões estratégicas para a AT&T e para a Warner Media que estão suspensas por conta disso?
No Brasil, as decisões que dependem desta questão e alguns investimentos que estão sendo feitos em outros países e poderiam ser feitos aqui, até resolver tudo, estão suspensos. E não pode acontecer nada em relação à verticalização até porque existe uma cautelar da Anatel. O Cade também determinou algumas separações bem claras, no sentido de que não pode haver troca de informações no negócio de TV paga, e isso está sendo cumprido. Mas quando tivermos que pensar quais as ofertas de OTT para a Sky, por exemplo, ou para a Warner Media, as dúvidas inibem o apetite. A Vrio (holding controladora da Sky) lançou no ano passado serviços OTT no Chile e na Colômbia, inclusive com conteúdos lineares, e queremos expandir, mas no Brasil ainda está complicado. A Sky nesse momento é sustentável e pode se manter da forma que está sem investimentos, mas para novos produtos e novos serviços não daria. A estratégia da AT&T também está em suspenso.
A combinação de uma decisão negativa para vocês no caso da fusão, combinada com uma decisão da Anatel na questão colocada pela Claro contra os programadores que operam no modelo OTT, pode resultar, na prática, no banimento dos canais lineares da Warner Media do Brasil?
Se canal linear vendido por assinatura na Internet for considerado SeAC, significará que nenhum programador poderá prestar serviços de distribuição por OTT linear, porque nenhum pode ser operador de telecomunicações. É uma barreira grande a todo o mercado. E uma coisa anormal em todo o mundo. Ou seja, se a decisão da Claro prevalecer nem programadores internacionais nem a Globo poderão fazer distribuição de conteúdos lineares, nem esportes, pela Internet. Porque para fazer precisa de uma licença de SeAC, mas não pode fazer isso pelo artigo 5 e, mesmo que possa, não pode pelo artigo 6 ter artistas, direitos, roteiristas. É um beco sem saída. Isso ao mesmo tempo que o mundo está indo em outra direção, produzindo cada vez mais conteúdos, criando outras formas de distribuir. As cadeias de valor no modelo tradicional se quebraram e isso está criando inovação, e nós incumbentes estamos tendo que nos adaptar. O efeito destes dois assuntos na Anatel pode congelar o Brasil no século 20 enquanto o resto do mundo já mergulhou no século 21.
E o fato de o seu caso estar sendo analisado por duas agências, Ancine e Anatel, traz alguma preocupação?
Se houver uma divergência entre os dois de resultado ou de timing, confesso que ainda não sabemos o que fazer. Seria muito anômala a situação. A gente está apostando na sintonização dos processos, mas ainda não vimos isso. Vemos dois processos paralelos, demos informações para as duas, sei que a Anatel pediu alguma informação para a Ancine mas não sei se a Ancine pediu informação para a Anatel. Depois que foi fechada a transação, entendendo que havia a necessidade de revisão de acordo com a Lei do SeAC, nós procuramos os reguladores para colaborar. Formalmente as agências é que abrem o processo, mas a gente foi lá voluntariamente porque sabemos que eles terão que tomar uma decisão. Mas é uma situação de incerteza. A Anatel andou mais rápido e a Ancine nesse momento está um pouco atrás. Mas não sabemos como resolver se houver divergências.
A lei existia quando a AT&T resolveu comprar a Time Warner. Vocês não olharam esse detalhe ou avaliaram que era um problema irrelevante?
Numa transação de quase US$ 90 bilhões, identificamos isso como risco, mas apostamos em uma resolução alinhada com a nossa interpretação da lei e com as tendências de mercado. Assumimos o risco e agora precisamos esperar resolver. Ancine e Anatel disseram que querem avançar rápido mas no tempo devido, e concordamos que seja assim. Não podemos ficar esperando para sempre uma decisão.
Nem esperar a lei mudar…
Da forma como está hoje, achamos que cumprimos com a lei, e com base disso a Anatel pode tomar uma decisão, na nossa leitura. Não apostamos nem trabalhamos para que seja mudada a lei. E vamos continuar defendendo esta posição. É só ler o artigo 5.
Fonte: Teletime News de 28 de fevereiro de
2019, por Samuel Possebon.
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