O mercado de TV paga teve o seu pior ano na história em 2019. A perda de base foi de 10%, quase 1,8 milhão de clientes a menos. Toda as operadoras perderam clientes, e o ritmo mensal de queda registrado ao longo do ano não dá sinais de melhora. A queda no setor de TV por assinatura se equivale, em termos percentuais, à queda de base da telefonia fixa, o que só contribui para explicitar a gravidade do problema. A prevalecer essa situação, qual o futuro da indústria? Como reverter o ciclo?
O diagnóstico para explicar essa forte erosão é mais ou menos consensual, apenas com variações de pesos: há uma combinação de inadequação do produto à realidade econômica de boa parte da população, uma inegável transformação tecnológica e de hábitos de consumo, com concorrência direta dos serviços prestados pela Internet, e um forte aumento da pirataria, impulsionada pelos dois elementos anteriores.
Se o diagnóstico é simples, o tratamento é complexo porque depende de uma conciliação de interesses, seja nas negociações contratuais e nas relações econômicas do setor, seja na disposição política de mexer na legislação anacrônica e pesada. Uma recuperação econômica mais intensa também ajudaria, mas talvez não resolva, porque a queda só se intensificou desde o fundo do poço da recessão, e não há sinais de melhora como se vê em outros setores da economia.
Um primeiro aspecto crítico da indústria de TV paga diz respeito ao marco legal e regulatório do setor. A TV paga, no seu modelo tradicional, possivelmente é o setor mais regulado que existe quando visto em comparação com outros meios de comunicação social, como a radiodifusão ou com a Internet (aceitando-se a tese de que Internet é comunicação social, o que é outro debate).
Há 25 anos, desde a extinta Lei do Cabo, o setor carrega canais obrigatórios (TVs abertas, canais do Legislativo, executivo e Judiciário). Há quase 20 anos, desde a criação da Ancine em 2001, o setor de TV paga é compulsoriamente contribuinte do fomento ao audiovisual nacional. Há quase 10, desde que o marco legal atual foi criado (Lei do SeAC, de 2011), há obrigações de conteúdo nacional. E talvez ainda seja um dos únicos casos no mundo em que existe uma restrição contra a atuação empresarial verticalizada, com regras de propriedade cruzada, em que empresas que produzem conteúdo não podem distribuí-los por conta própria e vice-versa.
Restrições sem fim
Algumas destas restrições têm prazo para acabar, como as cotas de conteúdo, que vão só até setembro de 2023. Outras permanecem indefinidamente, como a restrição de propriedade cruzada. Em algum momento será necessário fazer uma avaliação de benefícios, custos e adequação destas políticas. Até lá, elas são inevitáveis, mas se aplicam apenas para quem está no modelo de TV paga tradicional. Quem distribui conteúdos por assinatura pela Internet não tem as mesmas regras.
Num determinado momento já distante da história, este conjunto de regras parecia fazer sentido. Afinal foi a TV paga quem contribuiu enormemente para a proliferação de fontes de informação e entretenimento, criando uma alternativa à concentração da radiodifusão e em uma época em que o acesso a conteúdos audiovisuais pela Internet era limitado pelas restrições técnicas da rede. No atual ambiente, a Internet virou a plataforma dominante de informação e distribuição de conteúdo, e as empresas que ali atuam não carregam os legados de 25 anos nem restrições geográficas. Há em outros países um debate crescente sobre regular ou não as grandes plataformas de Internet, o que é uma forma de ver ver e enfrentar o problema da assimetria regulatória (subir o sarrafo para todos), ainda que isso pareça incoerente com o discurso liberal adotado pelo governo.
Olhando-se a TV por assinatura como serviço de telecomunicações, há também uma situação única. É um serviço regido por lei específica, o que não acontece com os demais, como banda larga ou celular. A TV paga conta, por conta de sua legislação específica, com um emaranhado de comandos regulatórios editados por duas agências reguladoras (Anatel e Ancine), que atingem praticamente todos os elos da cadeia do setor, de programadores a distribuidores, e normatizam desde a forma como contratos de licenciamento de conteúdo devem ser feitos até a forma como as empresas atendem o consumidor pela Internet.
Por ser estabelecido em lei como um serviço de telecomunicações, o setor de TV paga é tributado pelo ICMS, como se o que fizesse a TV por assinatura ser o que é fosse a rede de transporte, e não o conteúdo em si, numa clara desvantagem em relação aos serviços que oferecem a mesma coisa pela Internet. O marco legal da TV paga, e toda a cadeia regulatória decorrente dele, simplesmente não fazem mais sentido na realidade competitiva atual.
Pelo menos desde 2011 observa-se uma rápida mudança do modelo de consumo de conteúdos audiovisuais pelas plataformas de streaming. A não-linearidade parece cada vez mais inevitável porque, de certa forma, está ajustada ao impulso natural de se consumir conteúdos quando e onde se queira, sem restrições de tempo. Esta é a forma como as pessoas ouvem música, leem notícias e livros, e não haveria de ser diferente no consumo de conteúdos audiovisuais. Só não foi assim até hoje porque havia uma limitação tecnológica e o modelo "broadcast", de um para muitos, era o caminho tecnicamente mais viável. Isso mudou e a tecnologia hoje permite o modelo não-linear sem nenhuma desvantagem. As empresas de TV por assinatura sabem disso há muito tempo e estão alterando sua tecnologia, mas há limites legais, de custos e contratuais para a mudança de modelo.
Lógica econômica
Neste ponto entra o outro conjunto de variáveis que precisariam ser mexidas para uma verdadeira transformação do setor. A TV por assinatura é hoje organizada em canais e os canais são acomodados em pacotes, sem muita flexibilidade para se quebrar esta estrutura pré-estabelecida. É algo que nove entre 10 pessoas de fora da indústria reclamam. Mas há uma razão para essa lógica: a prioridade da TV por assinatura sempre foi a diversidade de conteúdos disponíveis, pois isso é o que diferenciava a TV paga da TV aberta. Produzir conteúdo, contudo, tem um custo, e ele é muito alto. Empacotar programas e canais de maior demanda juntamente com programas e canais menos demandados permite uma grande distribuição a todos, viabilizando assim os diferentes conteúdos, seja pelo número de assinantes, seja pela publicidade. A conta, entretanto, acabava sendo paga pelo assinante, que até então via sentido no modelo, até conhecer o outro.
Os serviços de streaming, por serem não-lineares na origem, vieram sem o modelo de pacotes e canais. Mas eles têm outra lógica econômica: eles não se pagam totalmente (ainda) pelas receitas que recebem dos assinantes, mas sim por outras fontes de recursos, seja na forma de um endividamento crescente, como é o caso do Netflix, seja no subsídio cruzado por outros serviços de venda, como fazem a Amazon ou Apple. Nos últimos anos, estas plataformas precisaram investir uma quantidade descomunal de recursos para formar grandes acervos que lhes dessem independência das empresas de mídia tradicionais e, ao mesmo tempo, passassem a ter conteúdos exclusivos, como diferencial em relação à TV paga tradicional. O fôlego desse modelo vai durar enquanto durarem estas fontes externas de recursos. Depois, haverá inevitavelmente um novo arranjo.
Este é o momento em que costuma se falar: "mas se a TV paga fosse mais barata não estaria passando por essa crise". É verdade. Mas ela é cara pelos fatores acima: paga um imposto muito maior do que aquele pago pelos serviços de Internet, precisa cumprir um série de obrigações regulatórias e legais que as empresas de Internet não precisam, precisa construir e manter um rede própria e dedicada ao serviço e precisa remunerar, sem recorrer a subsídio cruzado e sem alavancagem financeira, uma gigantesca quantidade de canais e conteúdos. E fazer isso, obviamente, dentro da lei.
Caminhos conhecidos
Tanto operadoras de TV paga quanto programadores sabem quais são os próximos passos a serem dados. Será preciso rever o modelo de relacionamento entre esses dois elos da cadeia da TV por assinatura. Os programadores sabem que precisam ir para o modelo não-linear, e muitos já estão caminhando nesse sentido. Mas também precisarão caminhar para um desempacotamento dos canais e programas, mesmo que com isso corram o risco de inviabilizar parte de seus conteúdos menos demandados, porque os clientes das operadoras estão demandando esse desempacotamento, e porque é assim que os concorrentes OTT estão atuando. Este modelo poderá perdurar por mais algum tempo ou ser aplicado em casos específicos, em produtos voltados a públicos específicos, mas nada indica que será preponderante junto ao assinante do futuro. Mudar toda essa lógica histórica é o passo mais complexo a ser dado pela indústria de TV paga em décadas, porque há uma cadeia ainda economicamente saudável muito bem estabelecida.
Já as operadoras sabem que as programadoras caminharão para a oferta de conteúdos diretamente ao assinante pela Internet, o que coloca em xeque seu papel na intermediação dessa relação com o consumidor. O papel de um eventual intermediário, que cobrará a fatura e integrará os serviços de diferentes provedores de conteúdo, é algo ainda incerto. As empresas de telecomunicações, especialmente as de banda larga e celular, são fortes candidatas naturais a ocuparem este espaço, mas outras querem ter o mesmo papel. Empresas como Apple, que fabrica dispositivos; ou fabricantes de televisores, como Samsung e LG; ou fabricantes de sistemas operacionais e plataformas, como Google; ou mesmo empresas de dispositivos conectados podem vir a ser "agregadores" de tantos conteúdos não-lineares.
Os próximos capítulos na discussão dessa relação entre operadores e distribuidores acontecerão nas negociações de contrato de programação que vencem a cada ano. Dificilmente os modelos tradicionais serão repetidos sem possibilitar válvulas de escape de ambos os lados para novos modelos.
Fato é que em um ambiente regulatório e normativo totalmente engessado como é o brasileiro, especialmente no ambiente da TV paga, qualquer passo em relação a novos modelos de negócio fica mais complexo. Todos sabem que é preciso equalizar as regras, e todos sabem que a lei não responde mais à realidade que se apresenta, mas ainda não parece haver um conjunto de forças remando na mesa direção para promover a necessária mudança de regras. Tanto que há 15 projetos de lei sobre o tema no Congresso e não há consenso sobre nenhum.
No limite, o ideal talvez fosse tratar tudo, inclusive os serviços atuais de TV por assinatura, como serviços de valor adicionado, como são os serviços de streaming, com o mínimo de regramento e tributação compatível com o que se cobra dos serviços prestados pela Internet (que são tributados pelo ISS). Restaria um necessário ajuste na legislação de proteção e fomento ao conteúdo nacional, sem distinguir o meio de distribuição. E seria preciso assegurar que todos os players passassem a ter o mesmo tratamento regulatório.
Pirataria
Resta, por fim, o problema da pirataria. As plataformas clandestinas de distribuição de conteúdo correm soltas, distribuindo pela Internet, na forma de aplicativos, canais e eventos que têm uma longa e cara cadeia para serem produzidos (e que por isso precisariam ser remunerados), sem pagar impostos, sem pagar insumos e sem cumprir regras de qualidade, atendimento ao consumidor ou segurança de dados. E, mais grave, muitas vezes promovidas pelas próprias empresas de redes de banda larga que cada vez mais massificam o acesso por fibra Brasil afora, mas não querem entrar no modelo tradicional de TV paga. A solução para esse problema da pirataria começa obviamente pela conscientização da população, que muitas vezes não enxerga a gravidade do crime que comete ao comprar um set-top de IPTV clandestino, mas passa pelo rigor na aplicação da lei contra as quadrilhas que estão por trás dos produtos vendidos. E demanda, sobretudo, o aprimoramento da legislação, inclusive a legislação de Internet, para permitir outras formas de combate à distribuição clandestina de sinais que deem alguma vantagem em relação a quem explora ilegalmente esse negócio.
Fonte: Teletime News de 3 de fevereiro de 2020, por Samuel Possebon.
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