Esqueça o discurso de que "acabou a Internet livre", ou o argumento de que "o que você vai acessar será definido pelas empresas de telefonia", ou ainda "mais uma do governo Trump contra a humanidade", entre tantas frases que estão sendo escritas desde que a FCC decidiu rever as regras de regulação da Internet. Esqueça tudo isso e reflita por uma outra ótica: a neutralidade da Internet (não necessariamente das redes) deixou de existir no dia em que a Internet se tornou um ambiente de negócios. Isso aconteceu há muito tempo. Há 23 ou 24 anos, para dizer o mínimo. Vamos olhar as coisas por esta perspectiva: o problema de fundo neste renascimento do debate sobre a neutralidade não é a neutralidade em si. O problema são as teles, ou o medo do que elas podem vi a fazer se não forem obrigadas a não fazer nada.
No fundo, boa parte daqueles que estão analisando (e criticando) as mudanças nas regras de neutralidade nos EUA (e por tabela no resto do mundo) estão preocupados com o que as empresas de telecomunicações farão agora. É o medo daquele que se tornou o grande vilão dos órgãos de defesa do consumidor, dos movimentos de militância da Internet e de boa parte da academia. As empresas de telecomunicações são geralmente retratadas como conglomerados gananciosos que só estão preocupados com seus bilhões em lucro e que não dão bola nenhuma para o consumidor, que querem proibir as pessoas de acessarem o que bem entenderem, que fracassaram na oferta de serviços digitais e por isso querem bloquear os concorrentes para obrigar as pessoas a consumirem seus produtos tradicionais. Com algum exagero, estes são os mesmos raciocínios que sustentam os argumentos do lado daqueles que criticam a decisão da FCC de retomar as regras pré-2015 para a regulação do ambiente da Internet. São argumentos que desconsideram, obviamente, os argumentos das teles: elas têm atendido a um volume cada vez maior de clientes que contratam cada vez mais produtos; que as margens de rentabilidade destas empresas estão abaixo de muitos outros setores da economia; e que os esforços de ampliação da infraestrutura acabam drenando qualquer investimento possível em serviços inovadores. Ainda assim, a qualidade dos serviços aumentou, o preço caiu e o serviço de acesso à Internet é infinitamente mais massificado do quera há 10 ou 15 anos, quando a questão da neutralidade passou a ser colocada.
Mas estes argumentos em que as teles são pintadas como as vilãs da Internet têm um outro problema de fundamento que independe de aceitar ou não as teses das próprias operadoras. Não há respaldo histórico desde que a Internet surgiu que corrobore essa imagem horrenda das empresas de telecomunicações. Não há evidências empíricas de que as teles tenham adotado ou venham a adotar tais práticas para destruir a Internet tal como a conhecemos. A história mostra que as empresas de telecomunicações nunca foram, de maneira sistemática e orquestrada, um problema para a Internet livre. Pontualmente, talvez, um ou outro caso de abuso, mas não como uma atitude permanente. Ao contrário, se considerarmos apenas os 24 anos de Internet comercial, é difícil encontrar um caso em que as empresas de telecomunicações tenham praticado ou cometido um ato que tenha colocado a Internet em risco. Nem poderia haver. Se existem serviços de Internet, é porque existe uma rede de telecomunicações dando suporte. E esta rede só se justifica se as pessoas puderem ter acesso a conteúdos que as façam contratar os serviços de conectividade. Uma coisa não existe sem a outra.
A Internet talvez seja a única infraestrutura do mundo contemporâneo que foi construída totalmente a partir da iniciativa privada, sem investimentos relevantes do Estado, como é o caso comum de portos, aeroportos, estradas e redes de energia. Quando as redes de banda larga começaram a se desenvolver, no final dos anos 90, boa parte da infraestrutura de telecomunicações era privada ou havia sido privatizada. Numa primeira onda logo após a popularização da Internet houve um esforço considerável por parte das teles para implementar uma nova infraestrutura, de redes óticas e cabos submarinos, apostando em uma explosão do mercado digital. Com o estouro da primeira bolha financeira da Internet, no começo dos anos 2000, esse esforço arrefeceu por alguns anos. Mas mesmo após o tombo, o ciclo de investimentos em infraestrutura foi retomado, desta vez também para o desenvolvimento de redes wireless capazes levar a Internet para dispositivos móveis. Em 2007 surgiu o iPhone e o resto da história é conhecida, como todo o ecossistema de aplicações e conteúdos que dependem desta rede para existir. Nada disso foi feito pelas empresas de telecomunicações por filantropia. O jogo econômico,a busca do lucro e a dinâmica do livre mercado sempre prevaleceram, sem que ninguém precisasse dizer ou impor qualquer princípio de neutralidade, o que só veio acontecer nos EUA em 2015 (ou em 2014, no caso brasileiro).
Foi o mesmo aconteceu no campo dos conteúdos. Quando a Internet deixou o ambiente das universidades e ganhou as ruas, entre 1993 e 1994, com o advento dos browsers de navegação gráfica, havia a ideia de que tudo tinha que ser gratuito. Trago um exemplo pessoal: quando lançamos nosso primeiro portal de Internet com notícias exclusivas sobre o mercado de TV paga, no começo de 1996 (chamava-se Pay-TV Real Time News), fomos criticados porque cobrávamos uma assinatura pelo conteúdo. "Como assim querer cobrar por algo na Internet?" Era o jeito de pagar as contas e garantir o emprego de quem se dedicava ao projeto, simples assim.
Mas aquele ambiente dos primeiros anos da Internet em que nem mesmo um site de conteúdos pagos era bem visto logo deixou de existir. A Internet rapidamente se tornou palco de disputas comerciais ferozes entre grandes empresas de software e grupos de investimento. A primeira das grandes batalhas, entre Microsoft e Netscape, na disputa pela hegemonia no mercado de navegadores, não tinha nada de romântica e libertária. Virou um caso emblemático de ação concorrencial na Europa, com reflexos em todo o mundo. Era uma briga capitalista em estado puro, e assim foi com todas as grandes disputas que dominaram o ambiente digital desde então. Com exceção de algumas iniciativas colaborativas sem interesses econômicos conhecidos por trás, como a Wikipedia, o que o grande público vê e vive na Internet hoje é um ambiente em que prevalecem interesses comerciais. Likes, cliques e compartilhamentos viraram o caminho para transformar conteúdos, inclusive os gerados pelos usuários de maneira colaborativa, em dinheiro, seja para quem produz o conteúdo, seja para o dono da plataforma.
Apenas no final da década de 2000 os governos acordaram para o fato de que a Internet tinha um problema: havia um grande abismo digital entre pessoas e sociedades conectadas e aqueles que não tinham esta mesma condição. Desenvolvida em um ambiente privado que visava, portanto, o lucro, as redes de banda larga privilegiavam o retorno dos investimentos, e se instalaram prioritariamente onde isso poderia acontecer. Isso criou distorções, presentes ainda hoje, e contra as quais a ação pública nunca foi capaz de atuar. Houve de fato uma onda de políticas públicas visando universalizar a Internet. Os caminhos adotados foram vários, desde investimentos diretos do Estado em redes até políticas de estímulo a investimentos privados com contrapartidas sociais. O Brasil desenvolveu o seu Plano Nacional de Banda Larga, mas os resultados foram bastante limitados e insuficientes diante das necessidades do país. Optou-se, politicamente, por usar os recursos gerados pelas telecomunicações em fundos e tributos no financiamento do Estado, não na universalização das redes e serviços.
Quando o advogado e professor da Universidade de Columbia, Tim Wu, desenvolveu o conceito e cunhou o termo "neutralidade de rede", em 2003 (época em que a Internet já estava plenamente consolidada, portanto) ele se baseou em uma evidência histórica: o poder que o monopólio que a AT&T teve sobre o sistema de telecomunicações dos EUA durante boa parte do século 20 e a sua capacidade de limitar o desenvolvimento de concorrentes e mesmo de outras tecnologias, como rádio e televisão. De fato, o poder da tele era tão grande que na década de 1980 o seu monopólio precisou ser quebrado por imposição legal. Mas o fato é que até hoje não surgiu, nem nos EUA nem em nenhum outro país de economia aberta, uma empresa que fosse dominante sobre a infraestrutura de telecomunicações a ponto de impedir o desenvolvimento de conteúdos e serviços de Internet, ou mesmo de concorrentes no mercado de acesso.
O que surgiu de lá para cá, isso sim, foram grandes conglomerados digitais. Empresas que conseguiram oferecer produtos e tecnologias tão inovadoras e atraentes aos seus consumidores que abocanharam parcelas significativas da audiência e das receitas disponíveis. Empresas que também abusaram de práticas comerciais abusivas e poder de mercado para ganhar posições. Geraram escalas de bilhões de clientes, contra as quais ninguém mais consegue competir, por mais livre que seja a Internet. Não por acaso, Google, Amazon, Facebook e Netflix, para citar algumas, são as principais protagonistas no ambiente da Internet.
Hoje, o que determina o que vai ou não ser visto na Internet e o que pode ou não ter sucesso econômico são os algoritmos, "data lakes" e conteúdos distribuídos por estas grandes empresas. As redes de telecomunicações são importantes, mas estão longe do protagonismo nesse jogo.
Ok, a possibilidade teórica de que os conteúdos sejam bloqueados ou privilegiados nas redes de telecomunicações é um risco a mais que se coloca no ambiente da Internet caso não haja uma regra que diga o contrário. Tal qual os riscos de que um algoritmo privilegie determinado site, ou de que um conteúdo qualquer tenha mais visibilidade do que na rede social. Sem dúvida existe o risco de que uma tele bloqueie o Whatsapp para que o usuário não deixe de manda SMS. Mas, na prática, alguém acredita que isso vai acontecer?
É tão improvável quando o risco de que os serviços de e-mails e backup de fotos do Google sejam interrompidos e os conteúdos apagados, ou que o sistema operacional Android de bilhões de smartphones no mundo passe a ser cobrado de uma hora para outra. Mas riscos de falhas de mercado sempre existem. O que nos joga para uma outra preocupação: quem regula esse ambiente digital?
Nos EUA, a FCC decidiu dizer que isso era um problema em uma relação de comercial e de consumo e como tal deveria ser regulado pela agência FTC, que atua na defesa dos direitos dos consumidores e práticas anticoncorrenciais (e da qual Tim Wu foi conselheiro, aliás). Foram muitos os protestos pelo fato de a FCC, que regula as telecomunicações, ter aberto mão desta prerrogativa e passado a bola para outra agência.
No Brasil a coisa certamente seria diferente. A Anatel é vista pelos movimentos de defesa da Internet como a "amiga das teles", uma agência capturada e que, por isso, não poderia nunca ser a reguladora da Internet. Por isso a regulamentação do Marco Civil da Internet estabelece que esta função fica dividida com a Senacon, do Ministério da Justiça (uma secretaria bastante sujeita a interferências políticas); e com o Comitê Gestor da Internet, uma entidade paraestatal sobre a qual não existe nenhum tipo de controle externo e que foi criada para ser um fórum de discussão de boas práticas na Internet, além de uma gestora de IPs e DNS (nunca para ser uma agência de fiscalização e regulação).
Mas a Internet de fato precisa de um regulador? Esta resposta também não é simples, afinal a Internet viveu bem, até hoje, sem alguém dizendo o que fazer e como as coisas devem ser. Os grandes riscos que existem no mundo de hoje, relacionados ao poder de disseminação dos conteúdos falsos, influência indevida em processos políticos e econômicos e promoção de crimes podem, muito bem, ser corrigidos com educação, esclarecimento e conscientização da população, além da aplicação das leis existentes. Proteção e administração do uso de dados pessoais digitais já é uma questão nova e mais complexa, onde um regulador parece ser necessário. E questões referentes ao consumidor ou práticas anticoncorrenciais parecem bem administráveis pelos mecanismos de controle existentes, ou por organismos reguladores integrados. O debate sobre regular ou não a Internet é, portanto, uma discussão relevante, mas o ponto de partida não pode ser agir em favor de um interesse em detrimento do outro.
As empresas de telecomunicações são apenas parte de um ecossistema muito mais complexo em que a Internet se moldou nas suas duas décadas de história. Julgar que a neutralidade da Internet acabou porque agora uma empresa de telecomunicações vai poder cobrar de um provedor de conteúdo para privilegiar determinado conteúdo é simplificar demais as coisas. Se admitirmos, nem que seja apenas para um esforço retórico, que a neutralidade nunca existiu, veremos que o debate fica bem menos maniqueísta e superficial. Vale o esforço.
Fonte: Teletime News de 15 de dezembro de 2017, por Samuel Possebon.
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