Leonardo Euler encerra seu mandato como conselheiro e presidente da Anatel na próxima quinta, dia 4, com o leilão de 5G. Trata-se de um momento importante para a Anatel por várias razões: é o maior e mais complexo leilão de espectro já realizado; é inédito ao ter sido o primeiro efetivamente não-arrecadatório; e porque foi aprovado pelo Tribunal de Contas da União mesmo com uma análise técnica bastante crítica. Leonardo Euler, juntamente com outros técnicos da agência, merecem o crédito por terem, no momento em que a Anatel precisou se impor, defendido a proposta da agência.
Euler também trouxe em seu mandato uma visão focada na desregulamentação dos serviços e modernização de algumas atividades, sobretudo na questão do tratamento de dados e informações por parte da agência. Também enfrentou alguns casos extremamente complexos no período em que foi presidente, como a regulamentação do Novo Modelo (ainda não concluída); o embate entre os provedores de TV por assinatura e os prestadores de serviços de TV via Internet (em que a Anatel abriu a porta para a oferta desregulada de serviços OTT); o início das arbitragens com as empresas de telecomunicações e a revisão da legislação do Fust e Fistel, sem falar no período de pandemia, em que o setor se mostrou essencial, respondeu sem nenhum sobressalto, mas esteve sobre constante pressão.
Nessa entrevista, Euler faz uma análise de alguns aspectos de sua gestão, avalia o processo de modernização do regulador brasileiro e arrisca alguns caminhos que podem ficar para o seu sucessor.
TELETIME – O que você avalia que gostaria de ter feito e não conseguiu, e que fica para o seu sucessor?
Leonardo Euler – Todos temos acertos e erros, e deixamos algumas sementes que ainda vão se desenvolver. Quando a Lei 13.879/2019 foi aprovada, com o Novo Modelo de Telecomunicações, imediatamente o processo de regulamentação chegou ao conselho e foi sorteado o relator, mas a sempre disse que o gelo derretia muito em algumas questões. A gente colocou a consulta, fizemos o regulamento, mas na consultoria contratada pela UIT os trâmites foram mais lentos do que se imaginava, por questões internas da UIT, mas os estudos serão concluídos ainda esse ano. A próxima gestão terá o desafio de liderar essa discussão com os atores, não só as concessionárias, mas também governo e o Tribunal de Contas da União, para que a gente tenha a adaptação das concessões para autorização atendendo ao interesse público. O desafio vai ser conseguir viabilizar um modelo em que todos ganhem. Tem um trâmite que passa pelo TCU, tem o processo de arbitragem em curso, mas são processos que dialogam. Acredito que ainda haja tempo hábil para isso e que o gelo não tenha derretido completamente, porque algumas metas do STFC foram amenizadas.
E o que muda em termos de prioridades da agência para os próximos anos?
Acho que desse processo das concessões e, também, com uma eventual adaptação da Lei do SeAC, a gente pode chegar no cenário de uma regulamentação por serviços, com apenas serviços móveis e fixos, com uma grande simplificação regulatória.
Outra questão é que Anatel, pela sua autoridade de compreensão do ecossistema digital, passe a se pronunciar sobre outros temas, como segurança cibernética, inteligência artificial e serviços digitais, e como essas relações na camada de conteúdo podem ser atualizadas. Já escrevi um artigo em que dizia que não se pode regular a camada digital usando ferramentas tradicionalmente utilizadas para promover a competição em setores como petróleo e telecomunicações. A visão de como promover esse ambiente diversificado e competitivo será um papel importante da Anatel, e isso passa também por colocar o consumidor no centro dos processos, dar a ele transparência e informação.
Hoje temos monopólios que se autoperpetuam, porque eles são baseados em dados: quanto mais dados eles conseguem, mais consumidores eles ganham, e com isso mais dados eles conseguem. Endereçar esse desafio é algo que passará também pela Anatel, que tem autoridade e compreensão do ecossistema.
A Anatel está preparada para isso?
Ela estará preparada, mas ainda tem um caminho a percorrer. Evidentemente, a agência está se preparando. Deixemos claro que eu não defendo que a Anatel regule a Internet, mas que ela seja um ator relevante nesse processo, não por voluntarismo, mas por conhecimento. Regular o desconhecido é complicado, e há muito a se entender ainda. Não é qualquer tipo de regulação que defendemos.
E na questão do espectro, você acha que muda a forma como Anatel atuará?
Com certeza, a gente já tem um arcabouço novo desde a Lei 13.879, com o mercado secundário, e é preciso pensar em como ter uma eficiência alocativa, compartilhamento e uso eficiente nesse novo contexto. E isso também passa pelo direito de propriedade. Não são questões excludentes. A gestão passa a ser cada vez mais dinâmica e democratizada, isso é inevitável, porque o recurso é escasso e cada vez mais demandado. É um bem público e escasso, mas a Anatel precisará se preparar também. É preciso criar bases de dados mais dinâmicas. Dar informação para o mercado e para os consumidores.
A agência chegou onde você imaginava quando colocava, ainda no começo do seu mandato, a necessidade de usar ferramentas de crowdsourcing para coletar dados das operações?
Esse processo, de coleta de informações por meio de crowdsoucing e outras fontes é irreversível e tem a ver com as tendências de inteligência regulatória. A gente estabeleceu parceria com algumas dessas empresas (Open Signal, Tutela, Ookla e BWTech) e os dados começam a aparecer. Teremos ainda o processo de drive test e o acordo de cooperação do BID com uma plataforma de acompanhamento que a Anatel nunca teve. Acho que houve um bom avanço mas isso é um processo sem fim.
Você acha que o mercado, que nunca foi regulado com base em dados não declaratórios, vai aceitar um modelo em que as informações sobre a operação venham da camada de aplicativos?
A Anatel não levanta dados estratégicos, muito menos os divulga, mas precisamos jogar luz sobre os dados. A simetria de informação é um princípio importante, e a agência vai buscar essas informações onde puder. Precisamos de ferramentas mais confiáveis.
Em relação à assimetria regulatória dada às PPPs em relação aos operadores incumbentes, acredita que esse modelo permanecerá por muito tempo?
A Anatel de fato fez um esforço muito grande de suprimir a carga regulatória dos operadores entrantes e pequeno porte. Mas o mérito do crescimento do mercado de banda larga é dos empreendedores. O que a gente tem que discutir agora é a desregulamentação das outras operadoras, das incumbentes, com a guilhotina regulatória que já está sob a relatoria do conselheiro Vicente Aquino, por exemplo.
Mas a assimetria vai continuar a existir. Elas, contudo, sempre podem ser revistas a depender do tema regulatório, como foi o caso do Regulamento de Segurança Cibernética. No caso do cenário competitivo, acho que isso poderá ser trabalhado na revisão do Plano Geral de Metas de Competição (PGMC), mas isso se insere num debate em que temos fusões e aquisições em curso e uma nova dinâmica após o 5G.
A questão da qualidade das redes e ocupação de postes pelos PPPs, é algo que a Anatel deva se preocupar?
Há muito o que se fazer em relação à qualidade, robustez da infraestrutura e integridade da rede, assim como em relação à ocupação dos postes. São coisas combinadas e que se conversam. Existem modelos alternativos de ocupação dos postes que podem ser discutidos, e é preciso criar incentivos para isso. Anatel e Aneel estão discutindo para alinhar esses objetivos na revisão da regulamentação conjunta de 2014, sob relatoria do conselheiro Moisés Moreira. Eu vejo a possibilidade de um modelo de negócios específico, como foi com as torres. É preciso entender o lado econômico disso, e entendo que existam questões relacionadas ao arcabouço jurídico. Porque as concessões de distribuição têm um período que talvez não seja suficiente para viabilizar esse terceiro ator, então seria preciso dar uma solução. Já conversamos com a Aneel e eles estão com o mesmo pensamento: essa questão impacta os dois setores até em termos de imagem. Tem uma possibilidade de que as agências trabalhem em um ambiente de sandbox regulatório para testar alguns modelos, possivelmente em Salvador.
Falando do edital de 5G, o que você acha que muda no mercado depois do leilão?
Acho que com mais opções e com atores regionais, a competição terá cada vez mais foco nos usuários. A configuração do mercado vai ficar interessante, e mostra que mesmo intensivo em capital, com grandes demandas de investimento em redes, podem surgir atores regionais fortes e modelos de operadores neutros. Aconteceu na banda larga fixa e o móvel caminha para ter uma configuração nova também. Surgirão novas demandas regulatórias, como roaming, compartilhamento, mercado secundário, MVNOs.
Você mencionou a necessidade de investimentos pesados em infraestrutura. O mercado de telecom é viável, considerando que a maior parte do valor das redes digitais fica na camada de aplicações?
Existe um contexto econômico, que não se restringe ao Brasil, em que as receitas crescem pouco, o fluxo de dados cresce exponencialmente e as margens ficam cada vez mais constrangidas. Isso resulta em menor retorno sobre o investimento, o que gera mais consolidações. Mas há um limite de até onde esse caminho pode ser seguido. A partir daí, a viabilização dos modelos e serviços precisa se dar por meio de parcerias entre setores. Serão necessárias muitas parcerias, porque é um universo muito amplo quando falamos de IoT ou 5G, por exemplo. São parcerias em que se juntam, de um lado especialistas em conectividade, de outro especialistas nos mercados. As operadoras precisam equilibrar pratos dos pesados investimentos sem deixar de olhar as oportunidades. Mas acredito que elas já tenham iniciado esse movimento de buscar essas parcerias, acordaram para isso, em diferentes graus, mas o processo começou.
E como você a possibilidade de que outros setores passarem a operar conectividade, até para atender necessidades específicas? Com o modelo de redes privativas, por exemplo?
Pode acontecer e vai ser em maior ou menor medida a depender das respostas das prestadoras em cada vertical. Não vejo uma rivalidade, mas sim cooperação e parceria, porque os interesses se somam. Mas a Anatel tem que estar aberta à possibilidade de que outros entrantes e empresas de outros mercados acessem os recursos para proverem a própria conectividade. Na minha gestão fizemos um acordo de cooperação com a ABDI pensando em desenvolvimento de redes para indústria 4.0 e em breve também vamos publicar os termos técnicos para que as operações de redes privativas. Sem prejuízo de que as redes de telecomunicações também continuem se movendo em direção a esses novos mercados. Nada impede que uma tele opere uma rede privativa sob encomenda para alguém.
Você acredita que o escopo e o papel da Anatel devem mudar em um cenário mais convergente?
Sim, a regulação tem que se adaptar em seu contexto e no tempo. A regulação do setor era diferente na época da privatização, com metas de universalização iguais, obrigações homogêneas em todo o Brasil. Mas hoje existe uma compreensão muito maior sobre as diferenças, a Anatel trabalha pelo modelo de gaps. O mesmo acontece no cenário de convergência tecnológica e de novos modelos de negócio. Pode ser que disso resulte uma agência com mais prerrogativas e competências, ou não. Depende do entendimento do governo e da percepção do papel do Estado regulador, que é o que melhor lhe cabe, no meu entendimento.
Olhando em relação às políticas públicas setoriais, se você fosse elencar um ponto que precisaria ser endereçado como prioridade, qual seria?
Impostos. O peso da carga tributário no setor de telecomunicações é completamente fora da curva e não faz sentido falar em economia de dados e sociedade digital sem uma infraestrutura que tenha um custo tributário razoável. Isso tem que estar na agenda prioritária, que reflita o papel essencial do setor. Operadoras de grande e pequeno porte, OTTs, sociedade civil, órgão de defesa do consumidor, todos deveriam se unir em torno dessa agenda, sobretudo no bojo da Reforma Tributária. Isso é essencial para o aprimoramento do ecossistema digital no Brasil.
Fonte: Teletime News de 29 de outubro de 2021, por Samuel Possebon.
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