Pouco mais de dois anos depois de assumir a presidência da Anatel, Juarez Quadros prepara a sua despedida da agência no próximo dia 4 de novembro. Quadros já havia sido ministro e secretário do antigo Ministério das Comunicações, além de dirigente de empresas do Sistema Telebras. Sua curta passagem pela Anatel, contudo, deixou algumas marcas. Foi o presidente que lidou com algumas das questões mais críticas dos últimos anos, como o processo de recuperação da Oi e o TAC da Telefônica, o desligamento da TV analógica para dar espaço à expansão da 4G, uma aceleração do processo de perda de base em diferentes serviços pela crise e o impasse monstruoso na discussão de um novo modelo. Ao mesmo tempo, destacou-se pelo esforço de recomposição do orçamento da agência depois de um quadro de penúria no ano passado em que os serviços essenciais como fiscalização e atendimento ao consumidor quase foram suspensos.
Nesta entrevista, quadros faz uma avaliação de seu mandato e deixa algumas recomendações para o futuro da Anatel. Ele mostra especial preocupação com a falta de uma solução legal para a questão dos bens reversíveis, uma revisão dos processos internos da agência para dar mais agilidade, a necessidade de vigilância em relação a interferências políticas e a utilização de mecanismos mais flexíveis de implantação de políticas públicas, como foi a EAD no caso da TV digital. Confira a íntegra da entrevista.
Em sua passagem na Anatel, havia a expectativa de desenrolar algumas questões mais rapidamente, como o cap de frequências, entre outras. Por que isso não foi possível?
O rito processual na agência precisa ser agilizado. Aliás, a palavra agilidade nesse momento digital deveria ser observada. O modelo que a agência utiliza precisa de revisão. Os processos passam por muitas etapas, vão e voltam, os gabinetes acabam fazendo retrabalhos… Discordo e oriento o meu gabinete a não refazer nada. Se precisa mudar, manda de volta à área técnica para uma diligência ou à procuradoria. Cada gabinete tem uma rotina diferente e isso muitas vezes provoca demora.
Isso não mostra um certo distanciamento do corpo técnico da agência e do conselho diretor?
Eu entendo que na minha gestão tentamos reduzir essa questão, fazer com que fosse eliminada, mas ainda falta algum esforço nesse sentido.
Houve alguma questão que você gostaria de ter entregado na sua gestão e não vai conseguir?
O que falta é o que depende de leis e decretos. Não podemos nos antecipar em fazer resoluções por conta de regras futuras. Na hora que faltam leis e decretos há um problema. Fizemos isso uma vez, quando aprovamos o PGMU e o PGO, que acabou não acontecendo. Mas o PGMU foi feito por conta do PLC 79, que acabou não saindo e ficou capenga. A expectativa era de ter o novo marco. Não digo que tenha sido um erro, mas uma ousadia de tentar correr com a coisa e depois não deu para voltar. Eu prego que haja a antecipação regulatória, mas é preciso que haja políticas, seja na forma de lei ou em decretos do Executivo. Mas, de fato, faltou dar mais agilidade à agência, sobretudo para o mundo digital. A Anatel precisava se antecipar, não ficar a reboque.
A agência optou por esperar o PLC 79, mas havia uma discussão prévia, e o senhor mesmo era partidário dessa ideia, de que seria possível reformar parte do modelo por decreto.
Foi uma discussão ainda no governo anterior, mas haveria a necessidade ao menos de um decreto. Não bastaria um ato normativo da agência. Até se tentou isso, mas houve uma decisão do ministro à época, e um entendimento do Congresso, de que seria necessário alterar a LGT. Mas meu entendimento é que a Lei Geral permite, dá essa sustentação legal. Mas houve um medo político de não enfrentar o Congresso. Não vejo, qualquer que seja a composição do Poder Executivo, essa coragem de usar a lei atual e buscar esta solução. Mas seria possível (reformar o modelo sem uma mudança de lei).
Como avalia a relação com os órgãos de controle durante a sua gestão? Houve muitas interferências. Isso atrapalhou a agilidade da agência?
Eu tenho relacionamento com eles desde os anos 70, quando me tornei gestor. Nunca tive dificuldades com os órgãos de controle. Conduzi o processo de licitação da banda B, por exemplo, e interagíamos constantemente, o processo foi aprovado. A mesma coisa no processo de privatização da Telebras. Fui eu que fiz a interação com o TCU e no final recebemos elogios de que o processo havia sido perfeito, aprovado por unanimidade. As contas da Anatel em 2017 estão aprovadas pela CGU sem ressalvas e agora seguem para o TCU. O processo de recuperação judicial da OI, onde tivemos que votar contra pela questão do tratamento dos créditos públicos, a área técnica que acompanha esse processo já entendeu que tudo o que fizemos foi correto e vai agora para a ministra Ana Arraes. Não tenho medo dos órgãos de controle, mas não deixo de negociar, interagir. Os processos estão quase todos públicos e abertos, pelo menos da nossa parte.
Esse cuidado atrasou alguma coisa ou comprometeu as decisões?
Não diria que atrasou, mas requereu mais atenção. Eu orientei a área técnica para evitar o confronto. "Vai lá, negocia, escuta, volta aqui". As inovações precisam ter segurança em relação aos aspectos legais justamente para evitar o confronto com os órgãos de controle.
O TAC da Telefônica foi um episódio emblemático da sua gestão, pela força que a Anatel fez inicialmente para aprovar o TAC, especialmente o senhor, e depois o TAC não saiu, com o seu voto inclusive. O que deu errado?
O TAC é uma ferramenta deveras importante para evitar que os recursos oriundos de multas caiam no tesouro e não sejam revertidos em favor do consumidor. Mas é preciso olhar o contexto. No caso da Oi eles estavam no meio da recuperação judicial e seria complicado aceitar porque corria-se o riso de perdoar uma dívida que poderia não ser paga. O TAC da Telefônica tinha seus méritos, mas começaram a aparecer os problemas. A mancha coberta (pela proposta) não tinha ninguém, mas começaram a aparecer os pequenos provedores que estavam ali. Eles não tinham interesse em aparecer antes, mas com o TAC eles se manifestaram. Quando houve a ameaça de um competidor, eles se revelaram. A Anatel estava navegando às cegas. Agora eles estão aí, mais de 5 mil ISPs. No mérito o TAC ficou injustificável e a empresa teve dificuldades de ceder àquilo que a área técnica da Anatel estava propondo. Acabou não prosperando, o que é uma pena pelo valor bilionário. Talvez o modelo não estivesse muito bem elaborado.
O senhor foi muito crítico ao longo da sua gestão sobre a questão dos fundos setoriais. Parece haver alguma solução para isso?
Vejo uma falta de vontade das autoridades constituídas, não do regulador, de dar uma solução para o problema. Não dá para haver uma dissonância entre Executivo e Legislativo, porque há vários projetos sobre isso no Congresso. Não é um problema deste governo, eu vivi isso quando estava no ministério. Quantas vezes a área econômica barrou a área setorial? Desonera, diminui a arrecadação, prejudica o superávit… Eu como ministro e secretário executivo tive que fazer recuos. E quando se prospera no Legislativo o próprio Executivo obstrui. Em outros momentos falta vontade política, falta de tempo, desvio de interesse, tudo acaba prejudicando o uso dos fundos de que o país tanto precisa. Parece que o assunto não é relevante.
O setor é visto de maneira irrelevante por que?
Não é dada a devida importância, ou porque não conhecem, ou não querem dar. O setor de telecom investe R$ 30 bilhões por ano, então parece que está bem, que está no piloto automático. Mas não é bem assim. O empenho que eu vi nos anos 95, 96 e 97 eu nunca mais vi, com reuniões ministeriais e todos discutindo o modelo até chegar a uma convergência, e depois indo ao Legislativo. Primeiro com a emenda constitucional, depois a Lei Mínima e finalmente a Lei Geral. Tudo desenhado, planejado. Foi uma época em que houve convergência em torno de um modelo, mas nunca mais vi isso.
Esta revisão de modelo deveria ter acontecido antes?
O que estamos vivendo agora tem uma defasagem terrível. Perdeu-se tempo, não por culpa deste governo, tratando-se de questões pontuais sem ver o estratégico. Administrar crises apenas não resolve o problema.
Ainda há tempo de resolver essa defasagem antes de entrarmos no ciclo de encerramento das concessões? Só a Anatel teria pelo menos dois anos de trabalho pela frente…
Antes tarde do que nunca. Já estamos quase em 2019 e as concessões vão vencer. Ainda há tempo para trabalhar, mas deixar isso para os últimos cinco anos é complicado. Até porque o serviço já não é mais o que a sociedade quer, no conceito de uma economia disruptiva. O que pode acabar acontecendo é que tudo passará a ser autorregulado pelo mercado, porque não se tem as diretrizes e as políticas adequadas. O mercado não espera, ele inova, sem esperar o Estado. Foi o que aconteceu com o ambiente dos serviços OTT, que já estão consolidados a esta altura.
O melhor caso de sucesso na implantação de uma política na sua gestão talvez seja a transição da TV digital. Qual a sua avaliação?
Foi um caso que deu certo, pelo envolvimento e compromisso dos diferentes atores em entender o que era a coisa. Eu cheguei depois que o conselheiro Rodrigo Zerbone (ex-presidente do Gired) já havia iniciado esse esforço de conciliação, e o edital foi muito bem elaborado e teve a concordância do TCU. Eu até diria que esse é um modelo a ser adotado para outros negócios, para levar uma solução para a questão da conectividade, por exemplo. É um recurso público que está sendo bem administrado. O importante é não perder o controle da situação. Vejo como um modelo que poderia ser adotado. Fazer entidades similares à EAD com a função de administrar recursos de natureza pública para políticas específicas.
Inclusive para a gestão dos fundos setoriais, como a Anatel inclusive sugeriu na consulta sobre o novo Plano Geral de Outorgas, em 2016?
É como é nos EUA, em que o fundo de universalização de telecom é há muito tempo administrado por uma entidade privada. Tem que levar banda larga na escola ela leva, num hospital. Não é exatamente como a EAD, mas é um modelo conhecido já. Nas próximas licitações que a Anatel for fazer, 5G por exemplo, vamos pensar nesse sentido? É uma questão de definir o objeto. Na TV, foi uma política social, de inclusão social.
Na sua questão houve alguns atritos com o MCTIC em questões específicas. Uma delas foi o Plano Geral de Metas de Universalização. Qual foi o problema?
Nesse caso o problema é que está se tentando resolver um problema criando outro. Já vivemos isso no caso do backhaul e a minha avaliação é que isso poderá se repetir (com a proposta de aplicar os saldos em 4G). Nós não temos autonomia de voo, nem o ministério, para responder aos questionamentos que virão por parte da sociedade civil, pelas próprias operadoras, que temem o efeito de contágio, em que temos uma rede multisserviços sobreposta às redes dedicadas ao serviço em regime público. A rede 4G incluída no PGMU correria este risco.
A Anatel vai conseguir resolver o impasse de entendimento e valoração da questão dos bens reversíveis?
Se não houver uma definição de ordem legal e uma definição do que é bem reversível, todos os atos tentados de forma infralegal serão perecíveis. Não adianta uma portaria do ministro ou um decreto, muito menos uma resolução da Anatel, para tentar definir o que é bem reversível. Esta matéria é muito complexa e entendo que o ideal é que uma lei resolva o impasse.
O que está no PLC 79/2016 atende?
A Lei Geral não definiu bem isso, o PLC 79 meio que repete o que está na LGT. O conceito é muito mais amplo, isolado em termos internacionais, porque só nós temos isso, e se não houver uma decisão maior, todos os atos ficam frágeis. Isso prejudica o setor todo. Eu pessoalmente sou favorável à teoria funcional, mas sou uma andorinha a tentar fazer verão. Não vejo de maneira prática a resolução do problema com o que temos no arcabouço legal. Seja pela tese funcional ou patrimonial. Eu teria muita dificuldade de propor. Até nos órgãos de controle há interpretações divergentes. É preciso uma definição legal bem clara com o fim da disputa de posições, teses etc. Temos insegurança, e se for para a esfera Judicial, coitados dos juízes.
Essa é a questão mais crítica da agência?
Ela precisa disse resolvido, mas não é uma questão da agência resolver. É preciso vir de cima, de uma lei. De quem vai ser a iniciativa? Estou lançando essa ideia porque senti o problema. Estou tentando harmonizar as posições dentro do conselho, como é minha tarefa. Não tem sido fácil, e com duas empresas concessionárias com problemas, seja pela recuperação judicial, seja pela iminência da caducidade, complica.
Que tipo de divergências existem?
Por exemplo, a tese da despatrimonialização que a Procuradoria Federal Especializada da AGU junto à Anatel trouxe. Eu tenho comungado com ela, inclusive antecipei um voto na última reunião do conselho sobre isso. Ainda que o bem não esteja na relação de bens reversíveis, que seja apenas um terreno vazio, a empresa está em dificuldade, então a alienação pode prejudicar a companhia em sua operação, porque o caixa vai ser usado para pagar dívida. A alienação afeta o patrimônio e isso pode prejudicar o esforço de venda da empresa, caso seja necessário.
Qual seu maior orgulho durante a sua gestão?
Eu encontrei um quadro de pessoal fabuloso, um pessoal que vem sendo concursado e trabalhado. Mas faltava recursos. Não basta dizer que quer a agência forte, é preciso ir atrás de recursos, e foi o que eu fiz, usando o Tribunal de Contas e a Lei do Fistel, que é clara ao determinar que não haja restrição do uso do fundo para o custeio. Fomos apoiados pelo TCU que em seu acórdão reconheceu isso, e certamente sem este acórdão a área econômica não nos contemplaria com o orçamento necessário. O congresso nunca desrespeitou o orçamento encaminhado. O corte era na área ministerial e depois na área econômica, e depois vinha do Congresso e contingenciava. Isso não aconteceu este ano e espero que não aconteça em 2019. Hoje não faltam recursos para capacitação, fiscalização, diárias para trabalhos em campo, estamos participando dos eventos internacionais relevantes. Foi o que foi possível fazer para ela voltar a ser fortalecida.
Existe o risco de interferências políticas na Anatel?
A agência não está blindada. Vai depender muito da autoridade presidencial não permitir que isso ocorra. A agência é de Estado.
Fonte: Teletime News de 30 de outubro de 2018, por Samuel Possebon.