Entrou em vigor, no dia 25 último, o GDPR (General Data Protection Regulation), o regulamento da União Europeia para a proteção de dados pessoais. Desde então, como todo o mundo que usa email, passei a receber um sem número de mensagens de empresas e organizações, com as quais, por intenção ou desatenção, interagia periodicamente. Todas solicitando que revisse ou visse os termos das autorizações de uso dos meus dados que, por desatenção ou descaso, lhe havia dado.
Na quinta-feira, 24, durante o Painel Telebrasil 2018, principal evento anual da entidade que congrega as maiores empresas e entidades empresariais de telecomunicações do país, assisti interessante debate sobre o tema: "O Big Data e os Benefícios para a Sociedade", aberto por Jeanine Vos, diretora executiva do Connected Living Programme, da GSMA, que apresentou resultados do projeto Big Data for Social Good, executado por aquela entidade mundial representativa da indústria das comunicações móveis. Do debate participaram ainda o Conselheiro Otávio Rodrigues, da Anatel; Mário Girasole, Vice-Presidente de Assuntos Institucionais e Regulatórios, da TIM; e Ricardo Sanfelice, Vice-Presidente de Estratégia Digital e Inovação, da Telefônica, sob a moderação da jornalista Fabiana Moura, da Bloomberg.
A apresentação de Vos centrou-se em duas iniciativas do projeto social da GSMA; uma desenvolvida na Índia, Malásia e Pacífico Asiático, na área da saúde, de uso das comunicações móveis para controle epidemiológico; a outra no Japão, de uso das mesmas comunicações para preparação da população na eventualidade de terremotos. Ambas as iniciativas convergentes com uma das mais marcantes características históricas das inovações no campo das tecnologias da informação e comunicação: o despertar de esperanças civilizatórias, quase sempre frustradas com o passar dos anos. Só para ficar em episódios brasileiros, um dos nossos mais importantes cientistas e intelectuais, Edgard Roquette-Pinto, dedicou-se, dos anos 1920 aos 1950, a projetos educativo-culturais com uso do cinema, rádio e televisão. Mas jamais viu sua PRA-1, Rádio Sociedade do Rio de Janeiro; seu Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) e sua televisão educativa, cujos equipamentos sucatearam no porto da antiga capital federal, se tornarem vetores fundamentais de nosso desenvolvimento em ciência, educação e cultura. Já nos anos 1970, na esteira da evolução das comunicações satelitais, o Projeto SACI – Satélite Avançado de Comunicações Interdisciplinares, cujos protagonistas foram Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE e a Secretaria de Educação do Rio Grande do Norte, era a grande esperança, depois frustrada, de desenvolvimento de uma avançada tele-educação entre nós.
Talvez, por isso, no debate do dia 24 que se seguiu à fala de Jeanine Vos, Otávio Rodrigues invocou a experiência 'quase religiosa' que muitas vezes embasa iniciativas sociais derivadas de novas aplicações tecnológicas de informação e comunicação para, num toque de duro realismo, reagindo a uma indagação da moderadora sobre se a Anatel estaria apta a exercer sua função reguladora em tempos de big data, afirmar que "nas gerações mais novas há uma espécie de renúncia da privacidade, colocando em xeque o elemento tradicionalmente visto no direito de proteção do núcleo de intimidade e privacidade. Talvez o enfoque que surja nos próximos anos seja um enfoque basicamente econômico, deixando de lado o enfoque tradicional de privacidade e baseando-se em conceitos econômicos e as vantagens advindas do compartilhamento e transmissão destes dados. Talvez ai seja a base de uma nova regulação. A visão clássica da proteção dado pessoal como proteção de privacidade, eu temo, tende a se tornar obsoleta" (ênfase minha).
Seguindo linha de raciocínio próxima de Rodrigues, Mário Girasole argumentou que, do ponto de vista regulatório, "é preciso quase que uma espécie de Sarbanes-Oxley de proteção de dados: construir um mecanismo que gere dentro das empresas accountability sobre como esses dados são usados", acrescentando que "se a economia de dados é equivalente à economia criada pelo petróleo, é preciso lembrar que o petróleo, ao mesmo tempo em que trouxe muitos benefícios, trouxe problemas que precisaram ser resolvidos, e o primeiro deles é a questão da proteção de dados pessoais. Agora estamos na fase de entender se estas são questões referentes aos direitos individuais, como trabalha a Europa, ou se são questões referentes aos direitos do consumidor".
Ainda que o raciocínio de Girasole pareça opor direitos individuais a direitos econômicos do consumidor, como se um excluísse o outro, tanto ele quanto Rodrigues apontam para o que me parece fundamental neste momento em que se debate no Congresso Nacional, Câmara e Senado, dois projetos de lei, e seus inúmeros apensados, que objetivam dar ao país uma legislação compreensiva de proteção de dados pessoais. Refiro-me à ideia, com a qual concordo em essência, de que nossos dados pessoais não são mercadoria. Mas se não são, por que Mark Zuckerberg, depois do apologético périplo ao Congresso dos Estados Unidos e ao Parlamento Europeu, prometendo sanar as recentes ofensas cometidas por sua empresa contra a privacidade de dezenas de milhões de usuários da sua rede social, prometeu estender as regras de privacidade europeia a todos os usuários do Facebook, mesmo onde elas não se aplicariam?
O que está de fato em jogo quando se discute internet e proteção de dados pessoais é o modelo de negócios que, desde os já tão longínquos anos 1990, permitiu a explosão para todo o planeta de empresas como Google, Facebook e Amazon, a cujo conjunto pode ser acrescida a Apple e Microsoft e sua igualmente disruptiva adaptação, mais a primeira do que a segunda, ao universo da internet. O mesmo modelo de negócios que fizera, décadas antes naufragar os sonhos civilizatórios, alimentados pelo cinema, rádio e televisão, de Edgard Roquette-Pinto: o avanço dos modelos de exploração comercial publicitária daquelas novas plataformas de comunicação ao invés de seu uso público, não comercial. Ou seja, pensar hoje privacidade, à luz, e essas questões não podem ser separadas, da inteligência artificial, deep learning e sua cultura algorítmica, não pode ter como seu único caminho de entrada os direitos humanos individuais e a necessidade de o mercado de dados pessoais saber protegê-los. Isso porque, como destacou Otávio Rodrigues, talvez hoje a visão clássica da proteção de dados pessoais como proteção de privacidade tenha se tornado obsoleta, e não porque isto nos tenha sido imposto por empresas malévolas – 'do no evil', propuseram um dia os fundadores do Google -, mas porque nós mesmos assim o decidimos desde que nos entregamos graciosamente aos encantos e desencantos das redes sociais comerciais, como um dia cedemos aos encantos e desencantos do cinema, rádio e televisão comerciais.
Ou seja, mais do que passar os próximos dias revisitando termos e condições de consentimento, ou de 'serviço, como quer o Facebook, dezenas deles, dada nossa incessante atividade na rede, para assegurar uma virtualmente simbólica proteção dos nossos dados pessoais – pois, com ou sem GDPR, eles continuarão a alimentar o mercado da internet -, não deveríamos estar também negociando com essas empresas outras vantagens econômicas, para além da ilusória gratuidade, que poderíamos auferir em troca dos nossos hábitos de navegação na rede?
Fonte: teletime News de 28 de maio de 2018, por *Murilo César Ramos.
(* Murilo César Ramos é Sócio-Diretor da ECCO/Estudos e Consultoria de Comunicações; Pesquisador Sênior do Centro de Política e Regulação das Comunicações – CCOM e do Laboratório de Políticas de Comunicação – LaPCom da Universidade de Brasília – UnB)
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