Na consulta pública sobre o Plano Nacional de Internet das Coisas (IoT), o governo brasileiro voltou a discutir sobre a questão de roaming permanente para as comunicações máquina-a-máquina (M2M). Esse recurso permite a uma fabricante de automóveis, por exemplo, produzir um carro com um SIMcard e comercializa-lo globalmente, sem a necessidade de localizar o perfil de conexão para cada país. Isso permite a expansão mais rápida das conexões de IoT, mas pode ser anticompetitiva para operadoras locais. O assunto provoca discussões, já que as teles brasileiras são terminantemente contra, enquanto as operadoras e companhias internacionais, em geral, são a favor. É o caso da AT&T, que em sua contribuição para a consulta pública ressaltou por diversas vezes a necessidade de implantar o mecanismo no País. A empresa lembra que a utilização do roaming permanente não é ilegal em nenhum dos países que abordaram o assunto, exceto no Brasil (e na Índia, onde está ainda sendo considerado).
Em junho de 2012, em ofício de resposta à operadora móvel virtual (MVNO) Datora, a Anatel proibiu a prática, reiterando que o roaming deve ser apenas temporário. "Esta exigência legal tem o objetivo principal de proteger o usuário do serviço de telecomunicações brasileiro, uma vez que os órgãos governamentais terão maiores dificuldades de atuar sobre os agentes estrangeiros caso haja alguma controversa entre o usuário e esse prestador de serviços". A agência destaca ainda impacto tributário (PIS/Cofins, Fistel e outros) relacionados à prestação do serviço móvel.
A AT&T chegou a enviar à Anatel em dezembro passado uma carta na qual reconhece o motivo da proibição. Mas a empresa argumenta que a liberação atenderia as preocupações da agência, assim como traria benefícios para a expansão da IoT no País. Na carta, a sugestão é a de cobrar o Fistel de afiliadas licenciadas locais da tele estrangeira, criando assim ambiente de igualdade competitiva e aumentando a arrecadação com a abertura do recurso. E a afiliada forneceria os dados da base para os relatórios da TFI e TFF da Anatel da mesma forma que uma MVNO faz atualmente. Na proposta da norte-americana, os SIMcards com uso exclusivo no Brasil seriam considerados roaming permanente durante um prazo contínuo de 180 dias. Obviamente, isso exigiria que a operadora internacional tenha necessariamente representação no Brasil para receber os boletos. É o caso da AT&T, mas não o de várias outras.
A carta da AT&T a qual este noticiário teve acesso foi assinada pelo vice-presidente executivo de gerenciamento de conexões globais da empresa, William W. Hague. Até a publicação desta reportagem, a empresa afirma que não houve retorno da Anatel.
Argumentos
Na contribuição da consulta do MCTIC, o teor da argumentação da operadora norte-americana é que o Estado deve viabilizar a participação no mercado global de Internet das Coisas, com atenção para os recursos finitos como espectro e numeração. Neste último caso, alega que a gestão deve ser ditada por soluções "bem-sucedidas", citando o uso de numeração extraterritorial e roaming permanente, em conformidade com práticas nos Estados Unidos e Europa. A operadora alega que clientes contaram que a restrição ao roaming permanente "levou algumas empresas a evitar o Brasil em seus planos de distribuição global, ou mesmo a usar um modelo de negócios que não possui a eficiência que de outra maneira estaria disponível". Vale ressaltar que a companhia enxerga que as MVNOs "não são apropriadas para todos os casos de uso de M2M", sugerindo assim "modelos alternativos" de prestação.
Na visão da operadora norte-americana, os contratos de roaming (podendo utilizar as principais redes brasileiras) seriam aproveitados para a IoT. No caso de teles que quisessem também fornecer suporte ao serviços M2M do cliente, o contrato seria atualizado com um "Anexo M2M", estabelecendo transparência nos recursos de numeração e termos específicos para o tráfego de máquina-a-máquina. A AT&T afirma já ter estabelecido contratos com "várias" operadoras brasileiras com Anexo M2M específicos, o que permitiria ao modelo de negócios um rápido crescimento uma vez que o roaming permanente fosse liberado.
Para a AT&T, o roaming permanente é necessário para o desenvolvimento do mercado, sendo o método mais eficiente para a distribuição de um dispositivo global de M2M e IoT ter apenas uma operadora (e um perfil do SIMcard) para todos os países, utilizando apenas uma plataforma para encomendas e provisionamento e geração de um relatório para todos os países. Além disso, permitiria a eliminação de treinamento e pessoal para plataformas múltiplas, da necessidade de estoques específicos por região e da necessidade de saber o destino final do produto desde a fabricação. A justificativa é de gerar "economias de escala para dispositivos e marcos regulatórios que sejam interoperáveis através das fronteiras", uma vez que a margem por conexão é reduzida em relação à numeração tradicional. Além disso, traria eficiência operacional, uma vez que a tele aproveitaria os acordos de roaming já implantados para outros serviços, e custos mais baixos ao usuário final.
A AT&T afirma que haveria um "pesadelo logístico" sem o roaming internacional, uma vez que as empresas seriam obrigadas a negociar contratos individuais, o que seria oneroso e consumiria tempo; manter estoques individuais de dispositivos para cada país; e exigiria o uso de plataformas diferentes para encomendas e provisionamento em cada país, algo também custoso. "O fabricante precisa manter apenas um SIM em estoque e não precisa saber o destino final do produto no momento de sua fabricação, de modo a garantir a instalação do SIM de uma MNO local num dispositivo destinado ao país daquela MNO." A empresa não cita, porém, as consequências caso apenas o Brasil proibisse a prática.
Casos internacionais
Estudos e consultas do corpo de reguladores europeu Berec e da Comissão Interamericana de Telecomunicações (Citel) são a favor da prática. A AT&T afirma que reguladores de vários países "começaram a encarar o uso de roaming permanente e o uso associado de recursos de numeração extraterritorial como um benefício" para a IoT.
A operadora cita o relatório nº 153 de novembro de 2010 do Comitê de Comunicações Eletrônicas (ECC), entidade da Conferência Europeia das Administrações de Correios e Telecomunicações (CEPT), e que recomendou aos reguladores estabelecer uma política de numeração "suficientemente flexível" para um prazo mais longo, e mais dois relatórios de 2013 e 2014 que citam a possibilidade de uso de números E.164 (MSISDNs, ou números de telefone, mas com diferenciação para M2M) e de E.212 (IMSIs) de forma extraterritorial para serviços M2M. Os relatórios em geral concluem que o uso extraterritorial de numeração para serviços máquina-a-máquina funcionam porque o modelo de negócios é diferente da telefonia comum, com características de altos volumes e margens baixas.
Já o Berec identifica números de telefone para uso extraterritorial como um "método razoável", e conclui que o roaming permanente "é de suma importância para o sucesso de certos modelos de negócios de IoT" em seu relatório de fevereiro do ano passado. A AT&T lembra ainda que, em setembro, relatório da Citel recomenda o roaming permanente (números E.164 e E.212) para a Internet das Coisas. A companhia cita que a agência reguladora de redes alemã Bundesnetzagentur permitiu em junho de 2016 o uso dos números E.212 para a prestação de serviços M2M dentro ou fora da Alemanha, com uma consulta pública em outubro específica sobre o E.164. Lembra ainda da decisão do regulador belga BIPT, que decidiu liberar o recurso após considerar demanda para o uso extraterritorial e de enxergar que isso não ocasionaria "qualquer problema significativo".
Da mesma forma, de acordo com a AT&T, a agência reguladora italiana Agcom publicou em dezembro passado resolução para alterar o plano de numeração nacional para permitir expressamente o uso extraterritorial de códigos E.212. A companhia também recorda que os Estados Unidos não proibiram nenhuma condição de uso desses códigos IMSI de outros países em dispositivos M2M após questionamento da Citel.
Na Índia, a situação ainda é indefinida. Assim como no Brasil atualmente, o governo sinalizou para a proibição do roaming permanente em seu documento National Telecom M2M Roadmap em 2015. Porém, no ano seguinte, o departamento de telecomunicações (DoT) do governo indiano identificou a possibilidade de que SIMcards estrangeiros utilizem tecnologia de "soft SIM" (como eSIMs) que permitam a atualização over-the-air (OTA). O relatório diz que "a opinião do governo é que, em longo prazo, SIM estrangeiro poderia ser permitido em dispositivos a serem utilizados na Índia apenas sob condição de cumprir os critérios de rastreabilidade".
Fonte: Teletime News de 10 de março de 2017, por Bruno do Amaral.
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